ACTAS  
 
8/28/2013
“Um retrato de Portugal”
 
Carlos Coelho

Muito boa tarde. Sei que estamos a começar antes da hora, mas ocorre que já cá estamos todos na sala e seria um pouco ridículo esperarmos alguns minutos só para o início da sessão bater certo com a hora marcada. Se faltasse alguém tínhamos de esperar naturalmente pelo início da hora, mas assim sendo podemos começar.

O nosso convidado de hoje, o Prof. António Barreto, tem comohobbya fotografia, como comida preferida o bacalhau e o animal preferido é o tigre. Sugere-nos um livro fabuloso, "A Obra ao Negro” de Marguerite Yourcenar. Devo confessar que gosto mais de "As Memórias de Adriano”, mas é uma grande autora. O filme que sugere é "A Janela Indiscreta” de Hitchcock e a qualidade que mais aprecia é a lealdade.

O Prof. António Barreto dispensa apresentações. Ele foi deputado, foi aí que tive o privilégio de o conhecer, fomos colegas na Assembleia da República, foi membro do Governo e Ministro da Agricultura.

Já disse isto uma vez aqui na primeira vez que tivemos o privilégio de o ter, o Prof. António Barreto foi a única personalidade que fez um almoço-conferência na Universidade de Verão. Em 11 edições foi feito um almoço-conferência de propósito para ele.

Vocês não se recordam porque são muito novos, mas na altura em que foi Ministro da Agricultura houve um grande movimento do PCP contra ele por causa da Lei da Reforma Agrária. Então, o país de Norte a Sul ficou cheio de pinchagens nas paredes, nos muros, que diziam: "Barreto, rua!”. Nalgumas partes do país ainda se conseguem ver muros com "Barreto, rua!”. Eu disse que era o homem que tem o nome em mais ruas em Portugal, não nas placas oficiais mas naquelas que resultaram das manifestações do PCP.

[RISOS]

Devo confessar que tenho muita dificuldade em falar do Prof. António Barreto, sou um fã dele, acho que é das pessoas com maior integridade e honestidade intelectual que eu encontrei em toda a minha vida. É um homem com sentido de humor fantástico, uma inteligência fabulosa, um apurado sentido de rigor e um homem muito coerente. Dei esse exemplo há dois anos e repito hoje aqui: quando tive o privilégio de ter estado com ele na Assembleia da República fui testemunha, várias vezes, da irritação do Prof. António Barreto - porque quando ele se irrita, irrita-se mesmo a sério - por causa das estatísticas.

Ele dizia que não era possível nós aprovarmos leis e políticas na Assembleia da República, quando as estatísticas estavam atrasadas uma ou às vezes duas décadas. Estávamos na Comissão da Educação e tínhamos estatísticas com esse atraso e ele dizia isto com o rigor científico que teve sempre, com exigência académica: "Como é que eu posso trabalhar numa realidade que só conheço de há 20 anos atrás? Sem conhecer o que se passa hoje como é que posso tomar decisões para amanhã?”

Pois bem, passaram-se vários anos, uns 20 anos, e este homem quando teve a oportunidade, à frente da Fundação Soares dos Santos, fez a PORDATA. A PORDATA é um instrumento fantástico de observação da realidade portuguesa e não só. Nós vamos distribuir por todos um manual de utilização da PORDATA. Dentro de alguns minutos estará já na rede UV o acesso a uma publicação que o Prof. Barreto ofereceu há pouco e é um retrato de Portugal, uma pequena brochura mas que tem que ver com a nossa aula de hoje e que estará disponível na rede UV na Intranet.

Não dizendo mais nada, para não embaraçar o nosso convidado, pois sempre que falo dele fico muito entusiasmado porque o respeito muito, dou a palavra ao Prof. António Barreto para nos fazer "Um retrato de Portugal”.

[APLAUSOS]

 

Minhas senhoras e meus senhores, muito boa tarde a todos, meus caros amigos da JSD, Hugo, Duarte e Carlos Coelho. O Carlos Coelho enganou-se, nós conhecemo-nos há 30 anos. Ele deve estar a tentar enganar a idade. Já agora, Carlos, nunca convidem ninguém para um almoço-conferência porque assim daqui a 30 anos dir-se-á que só houve um que é melhor.

Tive muito prazer em ter estado aqui convosco há dois anos nesse famigerado almoço-conferência, gostei muito do espírito que era visível e perceptível. Gostei de ver como trabalhavam durante uns dias e havia resultados, efeitos e consequências do vosso trabalho.

O tema que o Carlos e vocês me propuseram, "Um retrato de Portugal”, tem isto de ingrato que é se me deixarem, paro às oito horas da noite para jantar, portanto tentei fazer aqui um retrato tão exaustivo quanto possível, mas que vou tentar também organizar de maneira a ficar dentro dos 45 minutos para depois podermos conversar.

Com algumas indicações prévias, a primeira é de que um retrato é feito de mil e um elementos, não é só da cara, é um retrato complexo e portanto desde elementos da natureza até questões da política, tento incluir tudo o que pode definir, configurar ou desenhar esse retrato. Em segundo lugar: não vou fazer um retrato instantâneo, aquilo que se chamava quando havia máquinas diferentes das de hoje que se chamava desnapshotque é uma foto instantânea e mesmo antes disso chamava-se "bater uma chapa”. Não sei se algum dia algum de vocês ouviu essa expressão aos vossos pais ou avós. Chamava-se "bater uma chapa”, porque o negativo era uma chapa de vidro que se batia para tirar a fotografia.

Não vou fazer isso porque um retrato deste género exige além da foto instantânea que vemos, uma comparação consigo próprio, isto é, como é que era antes, há 20 ou 30 ou 40 anos e, finalmente, como são os outros. Assim se consegue, a meu ver, uma melhor impressão deste retrato de que vos vou falar. De vez em quando vão ter a maçada de ouvir banalidades. Algumas delas inclui-as de propósito, porque muitas vezes há certo tipo de banalidades que são esquecidas como por exemplo que Portugal é um país muito velho, com uma sociedade muito velha, antiga. As pessoas esquecem isso, que é uma sociedade, uma nação, um Estado, que tem mil anos. Porque isto tem implicações depois, na ocupação do território, na ocupação e uso do solo e tudo isso são implicações que se deve à idade do país, ou da nação ou da sociedade.

Por outro lado é bom referir e insistir na antiguidade da sociedade, do Estado e da nação, porque Portugal é uma sociedade complexa, não é uma sociedade comparável por exemplo a países do terceiro mundo, como os de África, da América Latina ou da Ásia, que são sociedades, Estados e nações muito mais recentes e com um tipo diferente de complexidade. Quero vincar também o facto de Portugal ser um país variado. Isto é, variado geograficamente, não tem uma unidade e homogeneidade geográfica evidentes, apesar de parecer.

Um grande mestre da ciência geográfica, o Orlando Ribeiro, que vocês todos deviam um dia na vossa vida ler, tem dezenas de livros e tem sobretudo um que é o livro certamente mais importante do século XX jamais publicado. Chama-se "Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”.

Ele define Portugal de diversas maneiras e uma delas define o Portugal do xisto, o do calcário e o do granito, como define o Portugal mediterrânico, o atlântico e o de transição. São estas definições que mostram bem como Portugal é um país muito variado, nasceu da diversidade, não existe uma população original portuguesa, não há uma homogeneidade original portuguesa ou lusitana, a não ser para fins publicitários, ou propagandísticos, ou nacionalistas.

O Estado português precede a nação. Antes de haver uma nação portuguesa é criado um Estado que vai homogeneizando a sociedade e o país. A unidade que conhecemos de Portugal em meados e finais do séc. XX é de facto de um país unitário. Este país unitário foi fabricado, foi feito,it’s a man-made country, ou seja, um país feito pelos homens, por uma ocupação, por um Estado durante quase dez séculos.

Não esqueçamos ainda que Portugal é um país pobre de recursos naturais. A pobreza de recursos naturais em Portugal é tal que condicionou uma grande parte da História e condiciona ainda hoje fortemente a nossa sociedade, a nossa economia e a nossa política. Portugal é pobre em recursos naturais tais como solos agrícolas, não tem solos de boa qualidade agrícola. Imagino que a maior parte de vocês sejam urbanos, somos todos, e os urbanos acham todos que Portugal tem muito bom clima. Estão sempre a pensar no Turismo, evidentemente, ou nas férias, ou na praia. Para a agricultura Portugal tem um péssimo clima: chuvas irregulares, de Primavera e de Inverno que lavam os solos e tiram dele a matéria orgânica, e não tem gelo. O gelo e a neve dos países da Europa, por exemplo, fazem como os frigoríficos, conservam a matéria orgânica. A ausência desse tipo de clima é mau para a agricultura e os solos são muito lavados, pobres, de pouca profundidade, a não ser algumas bolsas como os famosos barros de Beja, ou na zona saloia de Lisboa, ou na Beira Litoral perto de Avanca, Vale de Câmara, Aveiro, no Minho, Entre Douro e Minho, há zonas de áreas férteis e de boa água. Mas são zonas excepcionais, pois a maior parte dos solos do país são bons eventualmente para arbustos e para floresta.

Quando digo arbustos pensem sempre que o principal arbusto para estas coisas é a vinha e o vinho em Portugal tem excelentes condições para o seu cultivo. Portugal é pobre em vias fluviais navegáveis, de Norte a Sul não se pode ir senão pelo mar. Portugal é pobre em ferro e em todos os recursos naturais da Revolução Industrial: carvão, ferro, gás e petróleo - da segunda e terceira revoluções industriais. Ao que consta, há boas perspectivas de encontrar gás natural economicamente viável a muito curto prazo, já se fala em meses ou anos para se iniciarem trabalhos muito sérios de exploração do gás natural na zona do Algarve.

As temperaturas portuguesas são moderadas, uma vez mais, boas para a vida humana mas não para a agricultura. Temos, em contrapartida, recursos marítimos favoráveis de toda a espécie: pesca, oceanografia, trabalho junto do mar, estudo e ciência que infelizmente não são frequentemente bem aproveitados. A posição geográfica tem vantagens e inconvenientes. Tem a vantagem da proximidade do mar, de poder estar historicamente em certos momentos num ponto importante de passagem entre Norte e Sul, Este e Oeste, Europa e Mediterrâneo, Europa e África, e Europa e Atlântico.

Em certos momentos da nossa história foi muito importante esta posição geográfica que foi vantajosa, mas também tem um inconveniente muito grande, que é a posição periférica em relação à Europa, nomeadamente à Europa continental. Tudo o que se passou na Europa de importante, em Portugal foi sempre à distância, longínquo; ninguém atravessa Portugal para ir viajar dentro da Europa. Permitam-me só citar um caso extraordinário, o caso da Suíça que é o país mais improvável do mundo: é pequenino, é pobre, na montanha, não tem recursos naturais, falam quatro línguas, é um país desejado com volúpia económica, geográfica e política pelos italianos, franceses, alemães, austríacos, por toda a gente.

Este país está no centro da Europa e por esse simples facto de estar no centro e no ponto de ligação entre Norte e Sul, Este e Oeste, fez da Suíça um país que depois é um à-vontade de vários povos que se lhe quiseram juntar, mas fez deste país um local aprazível e com potencialidades. Uma das origens da banca suíça, por que há bancos na Suíça, não é só porque é um país neutro, pois nem sempre o foi, nem só porque é um país desenvolvido, pois também nem sempre o foi, mas somente porque a cristandade na Europa do Norte que era rica mandava os seus dinheiros mensais e anuais para o Vaticano. Foi assim que o Vaticano viveu durante milhares de anos e esse dinheiro, imaginem o que era o dinheiro em notas, em moedas, em joias, em prata, como é que isso tudo chegava ao Vaticano vindo da Alemanha, da Holanda, dos países escandinavos e de todo o Norte.

Essa fortuna era transportada por mil e uma maneiras até aos Alpes e ficava ali parada à espera que acabasse a neve e o gelo, que se pudessem construir grandes comboios, no sentido de dezenas e dezenas de cavalos, carroças e diligências com exércitos que pudessem proteger aquilo tudo aquando da travessia dos Alpes. Na altura não era pera doce.

Então, começou-se a guardar na Suíça as riquezas vindas de toda a cristandade que iriam só quando chegasse já o meio da Primavera para o Vaticano.

Isto é uma pequena história, incompleta, pois a da banca suíça não é só isto, mas isto ajuda a perceber o que uma posição geográfica privilegiada pode contribuir para o desenvolvimento de um país.


Já vos disse, é uma nação muito antiga, previamente à Nação existiu o Estado, foi este que fez a Nação. O Estado foi feito graças à inclusão de muitos e diversos povos que aqui viviam. Leiam, quando tiverem oportunidade, os livros seja sobre a iniciação de Portugal do Alexandre Herculano, bastante antigos, mas sobretudo os de José Mattoso que tem um maravilhoso chamado "Identificação de um País” em que mostra e sublinha bem o que é a origem diversa e variada do nosso país. Foi feito com a inclusão de vários povos: celtas, iberos, mouros, etc., mas também exclusão de outros. Ao longo do tempo Portugal excluiu, ou expulsou, ou assimilou, mouros, judeus, castelhanos e galegos. Estamos num sítio, aliás, da judiaria que conhece bem esta parte da História.

Como Estado-Nação é certamente um dos mais antigos da Europa. Há uma velha rivalidade entre Portugal, a Polónia e outro país qualquer que diz que é tão antigo quanto nós; não vamos discutir esse tipo de campeonatos. É de facto um dos mais antigos Estados-Nações da Europa. É frequente citar-se a resiliência, a resistência, o orgulho dos portugueses que mantiveram a independência durante mil anos; sim, senhor, vamos aceitar isso, que com isso vivemos bem, mas também algo um pouco mais racional: uma das grandes causas da independência de Portugal ao longo deste período reside no aproveitamento inteligente das alianças internacionais.

Foi por causa da Inglaterra, ou da Espanha, ou da França, ou das lutas entre estes países e das lutas entre o balanço de poderes europeus que Portugal foi sabendo ao longo do tempo apoiar-se nuns para se proteger doutros. Por exemplo, a nossa protecção em relação a Castela ficou muito a dever-se às nossas alianças externas.

Neste processo, o Estado central em Portugal desempenhou um papel fortíssimo no nascimento do Estado, no fabrico e confecção da Nação, mas também na protecção do país. Uma das razões da centralidade, que ainda hoje vivemos de outra maneira, com outros objectivos e fundamentos, é a defesa do Estado perante Castela. Temos uma única fronteira, um único vizinho, muito grande, com vistas e apetites relativamente a Portugal ao longo dos tempos. A defesa do Estado português perante Castela fez-se através de uma centralização permanente e constante do poder e, como sabem e como hão-de reparar, praticamente não há poderes locais importantes em Portugal.

Os poderes feudais que foram muito fortes em Espanha, na França e na Alemanha, como em todos os países europeus, em Portugal são fraquíssimos e os grandes potentados locais, por exemplo,los grandesde Espanha são poderes locais muito, muito, fortes. Uma vez um andaluz disse-me ao telefone há três ou quatro anos, que já não ia a Madrid há 70 anos e dizia-me aquilo com um ar felicíssimo. Vai a Paris, a S. Petersburgo, a Londres, mas Madrid não.

São poderes locais muito fortes, coisa que não existe em Portugal. A razão do Estado centralizado que nós temos é historicamente muito forte.

Até há 30 ou 40 anos ( vocês não conheceram) mas Portugal não era uma sociedade plural. Portugal caracteriza-se pela unidade étnica, cultural, linguística, religiosa, tendo um só deus, uma só língua, uma só maneira de viver e de ser. Até tinha um só partido político, uma só liberdade e um só poder político. Sem esquecer - não mencionei há bocado - o facto de termos a fronteira mais antiga do mundo que em quase mil anos só teve uma pequenina alteração geográfica algures nos anos 80, aqui perto de nós, para os lados de Olivença, que ainda hoje se discute.

A partir dos anos 70, pouco antes de vocês nascerem, abriu-se um ciclo novo na História de Portugal, que creio que vai ter mais efeitos e consequências ao longo das próximas décadas. Portugal começou a transformar-se gradualmente numa sociedade plural. Com a chegada de cerca de 700 mil retornados de África, dos quais muitos pretos, ou mestiços, ou indianos, ou castanhos, ou qualquer que seja a origem étnica, com pouco tempo depois a chegada de imigrantes destes países africanos, mais imigrantes do Brasil - que nunca tinha havido em Portugal - e mais imigrantes de países europeus a começar pela Espanha. Simplesmente houve muitos milhares de espanhóis a viver em Portugal e também sobretudo da Europa do Leste, nomeadamente ucranianos.

Há dez anos o primeiro grupo de estrangeiros a viver em Portugal era de ucranianos, hoje já não são, muitos foram embora com a crise do emprego e económica, ou regressaram à Ucrânia ou foram trabalhar para outros países. Mas as imigrações mais estáveis, que são os imigrantes que vêm para ficar, é em grande parte composta por brasileiros, mais cabo-verdianos, mais angolanos e guineenses, são os principais grupos. Hoje, o principal grupo de estrangeiros a residir em Portugal é o grupo dos brasileiros.

Com tudo isto, começou-se a falar várias línguas nas ruas de Portugal. Começou a haver restaurantes, roupas e maneira de falar e de viver de todos os sítios do mundo. Há casamentos, costumes, origens familiares, várias, há locais de culto de praticamente de todas as religiões principais do mundo - coisa que era totalmente inexistente há 40 anos. Não tinham ideia a dificuldade de encontrar um bocadinho de pluralismo social, já nem falo político, de diferenças entre nós. Iniciou-se assim um período novo na História de Portugal, de que lentamente ou gradualmente nos vamos dando conta.

Há uma velha polémica entre vários intelectuais, historiadores e políticos em Portugal, em que certas pessoas dizem que Portugal não mudou, não muda, nem nunca mudará, Portugal ainda hoje é o Portugal dos finais do século XIX e como se lê os Maias, o Portugal que ali está é o mesmo de hoje. O que estas pessoas dizem, que é muito interessante e às vezes inteligente e que tem muita graça está totalmente errado, do meu ponto de vista: Portugal mudou muitíssimo nestes 100, nestes 50 e nestes 30 anos. Estes aspectos ligados com a pluralidade vêm à cabeça. Junto a estes fenómenos de pluralidade mais dois que constituem duas mudanças importantes também: um é a presença da juventude na sociedade e no espaço público; os jovens há 40 anos não existiam, estavam em casa fechados, ou nos liceus, ou a trabalhar na fábrica ou na quinta, não tendo uma existência pública, não frequentavam os espaços públicos e não tinham direito à palavra.

Imaginar há 50 anos o que estou a ver à minha frente era pura e simplesmente impensável. Os jovens, por todas as razões e mais algumas, a começar também pelo direito de voto, pela escolarização, pelo abaixamento da idade e maturidade intelectual, os jovens têm hoje um lugar importante no espaço público. Mas importante ainda: as mulheres. As mulheres no espaço público constituem talvez uma das mais importantes mudanças na sociedade portuguesa. As mulheres, há 50 ou 60 anos, que trabalhavam eram 15%, hoje trabalham 52% talvez. Nas universidades, nas escolas, nas diferentes profissões, as mulheres eram sempre minoritárias, sempre muito poucas, não se viam, não iam ao café, não iam ao cinema, não saíam sozinhas nem entre mulheres, nada disso. Era simplesmente inexistente.

Espero que vocês saibam - nas vossas aulas de História, de Sociedade, certamente já falaram nisso - que uma mulher há 40 anos não podia ter conta bancária, só com a autorização do marido, uma mulher há 40 anos não podia ter passaporte, senão com a autorização do marido. Se tivesse passaporte, cada vez que queria ir a Espanha comprar caramelos tinha de pedir autorização ao marido e ele tinha de escrever a autorização. Uma mulher não podia ter um emprego sem a autorização do marido. Muito raras mulheres - tinham de ter um ensino superior, ser cabeça do casal, pagar impostos -, uma meia dúzia delas, tinham direito de voto e direito a todas as condições estatutárias dos homens.

Isto mudou radicalmente. As mulheres, hoje, apesar das diferenças que há ainda duas grandes diferenças entre homens e mulheres - diferenças sociais e políticas, entenda-se - e uma delas é que nos grandes cargos de administração do poder económico e político os homens ainda são maioritários e tentam preservar o lugar. Vamos ver o que dirão os próximos anos. Por outro lado, nas empresas privadas as mulheres ganham menos que os homens pelo mesmo trabalho. As diferenças são seguras, entre 12% a 15%, as mulheres ganham menos pelo mesmo trabalho, o mesmo horário, o mesmo tudo. Procurar-se-á saber porquê, mas não duvidem das razões.

As mulheres hoje não têm profissões interditas. Era proibido as mulheres serem militares, ou diplomatas, ou juízas e já tudo isso é possível. As mulheres que eram professoras e queriam casar tinham de pedir autorização ao senhor ministro. As mulheres que eram hospedeiras tinham de pedir autorização e não podiam casar sem autorização superior. As mulheres que eram enfermeiras não podiam casar sem assinar um papel a dizer que renunciavam à profissão ou senão a pedir autorização ao senhor ministro. Tudo isto acabou.

Estou a ver algumas mulheres a olhar para mim com um olhar assarapantado e com os olhos deste tamanho, mas garanto que não estou a exagerar em nada. O Carlos Coelho está longe da minha idade, mas só pessoas com alguns anos é que sabem que isto que falo é estritamente verdade. Para não falar dos aspectos mais informais: uma mulher que ousasse fumar um cigarro em público num café era tratada de tudo e mais alguma coisa, como podem imaginar.

Finalmente, temos uma taxa de imigrantes estrangeiros média, não é muito elevada comparando com países europeus que têm cerca de 10% de estrangeiros, mas já atingimos algo como 4%. Isto, para a tradição portuguesa, é enorme. Portugal nunca teve estrangeiros a viver cá. Podem perguntar-se: então Portugal era cabeça de um império, tendo Lisboa como capital, então onde é que estão os africanos, os brasileiros, os indianos, os timorenses? Não estavam em Portugal. Sei que já sou muito velho e já foi há muito tempo, mas o primeiro africano que eu vi tinha 15 anos e foi um rapaz que veio jogar futebol para Vila Real e que acabou no Sporting, José Monteiro. Quem aqui é sportinguista tente saber quem é o José Monteiro que parece ter sido um grande jogador de futebol nos anos 70.

Portugal não era uma sociedade multi-racial, ao contrário do que dizia o regime na altura, era uma sociedade em que aqui estavam os brancos, europeus, cristãos e as diferenças raças e etnias estavam espalhadas no império.

Até 1980 Portugal viveu sempre com a emigração permanente. A emigração para o estrangeiro é um dado crónico e estrutural demográfico da população, desde todos os séculos XVIII, XIX, XX. Abriu-se a excepção em primeiro lugar com o regresso de colonos e pensem bem que chegaram 700 mil num ano. Em toda a história europeia este foi o maior movimento de imigração, de fluxo de pessoas, em tempos de paz, proporcional ao país em que estamos. Era 7% da população, aliás na altura era mais porque não tínhamos dez milhões. Foi um acto único na história de Portugal e na história europeia. Devo dizer-vos que se em toda a minha vida eu puder eleger um fenómeno que ainda hoje é fonte de algum mistério, é o facto de em tão pouco tempo esta população integrou-se, assimilou-se e desapareceu. Hoje ninguém sabe quem é que é retornado, quem não é.

Não houve conflitos sérios, conflitos raciais, violência, como houve coisas muito sérias noutros países europeus como por exemplo na França.

Então abriu-se esse período nos anos 70 com os retornados e os antigos colonos e os africanos e depois no final dos anos 80 e durante os anos 90 com um período único em Portugal em que o saldo migratório foi positivo. Isto é, vinham para Portugal mais estrangeiros do que portugueses que saíam. Chegou-se a pensar que seria uma inversão definitiva da história do país e que a sociedade e a economia tinham alterado radicalmente o país. Verificou-se, pouco tempo depois, já nos anos 2000, que não era verdade.

Portugal retomou uma espécie de fragilidade económica perante as suas condições naturais e perante a sua economia e desde há 7 ou 8 anos, como sabem, temos uma emigração que oscila entre 30 mil a 50 mil por ano. Alguns jornais mais sensacionalistas dizem rapidamente 100 mil a 150 mil por ano, mas com 150 mil por ano já não estávamos cá a maior parte. Mas vamos dizer que cerca de 30 a 50 mil são números parecidos com os números da emigração da década de 60, o que não é motivo de regozijo da nossa parte.

Alguns dados sobre a população, que é necessário que tenham para completar este retrato: é a população de mais rápido envelhecimento da Europa, isto é, que está a envelhecer mais depressa, sendo que será dentro de poucos anos, 4 ou 5, a população mais velha da Europa. O envelhecimento mede-se no rácio entre pessoas de mais de 65 anos e pessoas de menos 15. Este rácio, em Portugal, há 40 anos era o mais novo da Europa, com a população mais jovem da Europa. Agora Portugal está em vias de se transformar na população mais velha da Europa.

O crescimento da esperança de vida tem sido rapidíssima nos últimos 40 anos, o que em princípio é bom. Há quem fale do drama do envelhecimento. O envelhecimento não é um drama. Se eu tivesse vivido com a esperança de vida com que nasci já me tinha ido embora há 12 anos, o que quer dizer que 12 anos já cá moram e ainda bem que o envelhecimento me permitiu isso. Quando se fala de uma sociedade envelhecida fala-se sempre que agora os velhos vivem mais, vivem até aos 80 ou 90 anos. Numa sociedade envelhecida o problema não é esse, o principal problema é a baixa de natalidade.

Se não houvesse baixa de natalidade e de fecundidade, Portugal era uma sociedade em que as pessoas viviam mais mas não era envelhecida. É este rácio que faz uma sociedade envelhecida e é a baixa de fecundidade e de natalidade que justificam e explicam isto.

A fecundidade deve estar actualmente à volta de 1,3 crianças por mulher adulta. Isto está muito, muito, muito abaixo dos 2,1. Alguém sabe porque é que é preciso 2,1 de crianças? Com 2,1 há uma hipótese que um deles seja mulher. Porque só há renovação da geração se um dos filhos for mulher.

Vamos supor que 90% dos nascimentos eram mulheres, a taxa de reposição era mais baixa. Simplesmente, nascem mais rapazes do que raparigas, mais 54%. Portanto, para tentar estatisticamente compor ou rectificar este rácio fala-se de 2,1 que é necessário. Estão a ver onde pára a fecundidade com os nossos 1,3. A este propósito é indispensável sempre mencionar um dos feitos mais interessantes ou importantes da nossa história recente, que foi a quebra da mortalidade infantil. A mortalidade infantil era há 40 anos na ordem dos 80 ou 90 por mil, é hoje de 3,7 ou 3,2 por mil e foi uma quebra notabilíssima, rapidíssima, consistente e sustentada pois não têm havido quebras ou recuos. Fica-se a dever isto a muitos factores: a modernização da sociedade, o consumo da água (água potável), saúde público, serviços de saúde pública, educação das mulheres e dos pais, escolas, etc.

A estrutura familiar está em processo de transição rápido, drástico, e a média das famílias em Portugal hoje é abaixo de três pessoas, é de 2,7 ou 2,8. Quer dizer que a média de uma família, estando a falar de estatísticas, já não é sequer pai, mãe e um filho, é menos que isso. Ao mesmo tempo criou-se uma pluralidade de vínculos familiares. O vínculo familiar antigo que era o casamento, pai, mãe, filho, avós, netos, estes vínculos alteraram-se e entre uniões de facto, segundos e terceiros casamentos, casamentos não-católicos, o número de divórcios em crescimento e os filhos fora do casamento. Chamam-se filhos fora do casamento àqueles que resultam ou de monoparentalidade, uma mãe ou pai que vivem sozinhos, ou então união de facto.

Por uma razão qualquer, nós ainda vivemos numa altura em que uma união de facto que tenha um filho ou uma filha, essa criança passa a designar-se estatisticamente por "filho fora do casamento” apesar de estar em união de facto. Isso são pequenas incongruências terminológicas que acontecem sempre. O que hoje é um "filho fora do casamento” era há 30 ou 40 anos um "filho natural” - designação estranha porque parece que há filhos não-naturais -, era há 60 anos "filho ilegítimo”, nos anuários estatísticos dizia lá "filho ilegítimo” e há 100 anos eram "bastardos”. Nos anuários estatísticos diziam lá primeiro "filhos bastardos”, depois passaram a "ilegítimos” e agora já se dizem "fora do casamento”. Houve algum progresso.

Gostava agora de nos aproximar um bocadinho da política para caracterizar a minha ideia de que eu a partir dos anos 60/70 houve uma alteração profunda da sociedade e com a mudança e transformação entrou numa nova fase. Em primeiro lugar a Guerra Colonial que durou cerca de 14 anos e deixou profundas marcas na sociedade e na vida política, como devem saber. Em segundo lugar a duração da Ditadura, cerca de 45 anos, um facto quase inédito na Europa. Depois a revolução em 74 que resultou em grande parte da Guerra Colonial e da situação de Ditadura. Depois, a nacionalização da Economia que grande parte foi pura e simplesmente nacionalizada, ocupada e expropriada. Ao que se seguiu uma contra-revolução, durante quase 5 anos e depois foi seguida da reprivatização da Economia.

Tudo isto foi feito sem grandes sequelas graves, isto é, sem violência, sem mortos e feridos nem guerra civil. Passámos à beira disso tudo, mas nunca existiu. Tivemos depois o regresso dos retornados, que como já vos disse é um facto crucial da sociedade, da nossa história recente e finalmente tivemos a integração europeia.

Nesta enumeração há factos e factores positivos e negativos, que cada um avaliará como entender.

Quero dizer-vos só que isto caracteriza uma mudança rapidíssima, acelerada, na sociedade, na Economia e na política. Portugal estava há 400 anos virado para África e para a América Latina e de repente virou-se para a Europa. Tudo se alterou: a maneira de trabalhar, de viver, pois Portugal vivia há 40 anos em Ditadura e de repente teve Democracia, teve eleições e partidos políticos. Mas é provável, se olharmos o que ao lado a Espanha fez, que cessou a sua ditadura um ano após a nós e se olharmos para os 10 ou 15 países da Europa do Leste que a partir dos anos 90 também cessaram as suas ditaduras e também se reconverteram económica, social e politicamente, pensando bem nós talvez tenhamos perdido 20 ou 30 anos.

Gastámos muito tempo, energia, capital, forças e esforço com a Guerra Colonial, com a revolução, com a contra-revolução, com a nacionalização, com a reprivatização - tudo isto poderia ter sido feito de outro modo. Digo isto sem nostalgia nem melancolia, pelo contrário, mas é a mesma coisa que dizer aquela frase que conhecem tão bem, vou dizer devagarzinho para aqueles que não a conhecem bem: "Se cá nevasse fazia-se cá ski”. Quer dizer que se não tivéssemos perdido estes 30 anos estaríamos certamente hoje numa situação diferente e talvez melhor.

Com isto tudo os novos factos marcantes foram, depois disso, a fundação do Estado democrático, inédito na História de Portugal; a criação de um poder autárquico autónomo, inédito na História de Portugal. Quem vos disser que havia autarquias muito boas, eram nomeados muito antes. Na maior parte do tempo, na maior parte das décadas, os presidentes das câmaras, as vereações, eram nomeados ou eleitos por uma pequena parte de pessoas ricas.

O crescimento da administração pública: em 74 Portugal teria talvez 180 mil funcionários, há cinco ou dez anos já tínhamos atingido os 750 mil. A criação do Estado Social que não existia pura e simplesmente. Vou-vos dar um só número, apesar de gostar muito de estatísticas como vos recorda o Carlos Coelho, tento não vos massacrar depois desse almoço.

Em 1960 havia em Portugal 120 mil pensionistas dos quais cerca de 70 mil da Função Pública e 50 mil da entidade privada. Hoje há 3 milhões. Chama-se a isto Estado Social.

Não começou tudo com o 25 de Abril. Muitas coisas na Segurança Social, na Saúde, na Educação, começaram uns poucos anos do 25 de Abril, a partir de 1968 com aquela tentativa de liberalização frustrada e falhada do tempo do Marcello Caetano. Mas houve ali qualquer coisa que começou naquela altura, nomeadamente por exemplo o Estado Social, foi no princípio dos anos 70 que o Governo decretou que passava a haver umas pequeninas reformas para os "rurais” e para as "criadas de servir” - como se dizia na altura. Se perguntarem em vossas casas aos vossos pais e aos vossos avós, certamente que vos dirão: "Marcello Caetano, ah, as reformas dos rurais”. Porque foram decretadas e só passados muitos anos depois é que começaram a ser efectivas.

Criou-se em Portugal o fenómeno da solidariedade através do Estado Social que não existia antes, de coesão entre o Norte e o Sul. O país ficou mais pequeno. Eu vivia em Vila Real e para chegar a Lisboa era necessário um dia inteiro e almoço, lanche, etc., e para ir ao Porto demorava três horas. Portugal ficou pequenino com as estradas, com os meios de circulação e de transporte. A Segurança Social acelerou muito depois do 25 de Abril, na Educação e na Saúde. Na Segurança Social chegou-se a uma posição de crise, que não é de agora nem de anteontem com a Troika, mas sim de crise há quinze anos. Em Portugal há cerca de 1,5 activos - pessoas activas que descontam - por cada pensionista. Do ponto de vista matemático isto não funciona.

A prazo terá de haver alguma alteração profunda nesta equação, nos que pagam e nos que recebem, para que isto seja possível, se pensarem que na Europa, na maior parte dos países, esta equação são 3 ou 4 activos a descontar por cada pensionista.

Finalmente, a Educação, que quero só dizer-vos que foi uma alteração tão profunda quanto a da Saúde e da Segurança Social. A alfabetização hoje é universal. Os analfabetos hoje em dia em Portugal são praticamente todos idosos que já não conseguem, porque aos 70, 80, 90 anos vão mesmo morrer sem ter lido um bilhete postal. Nesse aspecto foi muito profundo o desenvolvimento equitativo da educação básica, secundária e da superior que foi enorme. a tal ponto que a meu ver foi rápido demais. Quando digo "rápido demais”, que ninguém me pergunte a seguir se eu queria que fosse mais devagarzinho, não queria, estou só a tentar tirar as conclusões e consequências.

Fizeram Educação sem ter salas, professores, métodos, manuais, livros, laboratórios, sem ter condições - como se diz agora frequentemente em Portugal - e isso fez com que a performance média do sistema educativo em Portugal seja tão medíocre, a meu ver, quanto ele é.

Neste conjunto de sectores sociais, a meu ver o que se portou melhor foi a Saúde por razões complexas, difíceis de falar em pouco tempo. Certamente uma das principais é que na Saúde estamos a tratar oethos, o princípio moral, deontológico, é a ciência, já na Educação é a ideologia. Na Justiça é a ideologia por exemplo, mas na Saúde não e esta é um sistema aberto ao mundo inteiro. Constipação é constipação, aqui ou na Noruega; diarreia é diarreia, aqui ou na África do Sul ou na Tailândia - os medicamentos, as consultas, o modo de tratamento -, e isto cria umethoscientífico em que o médico não pode inventar e não pode estar com ideias.

Na Educação pode-se inventar muito e pode-se estar com ideias e cometeram-se erros muito graves ao longo destes 30 anos; se quiserem, daqui a bocadinho podemos conversar um pouco mais sobre este sistema educativo na parte negativa do meu balanço acerca destes últimos 35 ou 40 anos.

Não sei se já o disse se não, mas o meu balanço é positivo tanto com a integração europeia como com as liberdades no desenvolvimento em Portugal, no sentimento de coesão e solidariedade. Nestes últimos 40 anos houve uma evolução globalmente positiva ou com aspectos positivos preponderantes.

Só que há aspectos muito negativos, o da Educação é um deles e o da Justiça é outro. O sistema judicial português é pouco eficaz, pouco justo, pouco pronto, é um sistema de justiça que está refém dos principais actores, os principais intervenientes, e faz aquilo que vocês vêem todos os dias na Imprensa, nos casos mediáticos e nos não-mediáticos. Ainda agora, uma parte da responsabilidade do que se passa com estes sistemas eleitorais e as candidaturas e elegibilidades é pura e simples política mas também responsabilidade judicial.

Para concluir há ainda um ponto que eu tinha de mencionar e tinha absolutamente de o fazer. Há um fenómeno importante que preparou grande parte da nossa evolução dos anos 60 que é a década de ouro da economia portuguesa. A década de ouro da economia portuguesa situa-se mais ou menos entre o princípio dos anos 60 e anos 70. Durante estes mais de dez anos a taxa de crescimento da economia portuguesa anual foi de mais de 6% ao ano.

Já viram o olhar feliz de um ministro das finanças qualquer que hoje anuncia que Portugal cresceu 1% ou meio que seja, na altura era mais de 6% e houve anos em que o PIB cresceu 10%. Houve anos em que só a Indústria cresceu 18% e foi este período que criou métodos de trabalho, optimismo, confiança, oportunidades de emprego.

Em 1974, ao contrário do que diz avulgattamarxista que Portugal era um país de desempregados, não era, em Portugal não havia desemprego, até porque um milhão e meio tinham-se ido embora, tinham emigrado.

Seja porque havia muito trabalho, novas empresas e sobretudo novas indústrias, que vieram - ponto essencial - no quadro da nossa abertura à Europa e ao estrangeiro com a criação da EFTA em 1959/1960 que foi um dos factos marcantes do que vai ser a evolução económica seguinte.

Estou mesmo, mesmo, mesmo a fechar. Deixo muita coisa que vos queria dizer, mas talvez tenha oportunidade ainda de cá voltar e podemos falar das desigualdades e das questões económicas actuais. A minha maior preocupação hoje, depois do balanço - que vos digo e repito - globalmente positivo, além dos factos com que toda a gente se preocupa e que tem de se dizer, como o desemprego e a falta da oportunidades, etc., a minha grande preocupação é com a sustentabilidade da democracia portuguesa.

A democracia portuguesa viveu graças a três ou quatro grandes factores, vamos chamá-los os grandes pilares da democracia. Um deles foi um relativo consenso político entre dois grandes partidos e mais dois ou três pequenos. O consenso nunca é unânime, não há unidades ou uniões nacionais, não vamos falar de nada disso, pois houve consenso que fez uma Constituição. Não vale a pena recordar que não gosto da Constituição e gostava que fosse outra e espero que um dia se possa mudar, mas já é cada vez mais difícil.

Mas esta Constituição é uma obra-prima de defesa e que permitiu e garantiu que ninguém ficasse de fora. Portugal vive há 40 anos como nunca tinha vivido antes, sem deportados, sem exilados, sem presos políticos, sem gente condenada. Este consenso integrou os retornados - não era fácil -, procedeu à integração europeia, fez a contra-revolução, fez a reprivatização da economia e isto foi um pilar que agora está em causa. Basta ouvir qualquer debate parlamentar, qualquer diálogo - "diálogo”, é uma maneira de dizer - entre oposição e Governo e percebemos que o consenso está quebrado. Percebe-se que não há maneira, ou já não há maneira, de conseguir um novo consenso para os próximos anos.

Estou preocupado com isso, porque foi graças a isto que vivemos durante 30 ou 40 anos, pelo bem e pelo mal.

Em segundo lugar, o segundo pilar da Democracia é a Europa. A integração europeia protegeu, ajudou, deu acolhimento a um país que vinha de África, do Atlântico, de uma revolução, de uma ditadura, de uma contra-revolução e a Comunidade Europeia - como se chamava na altura e depois a União - ajudou na altura, foi uma casa de acolhimento, uma hospedagem, uma albergaria onde nos sentimos bem.

A Europa está hoje incapaz de resolver os seus problemas, não é os nossos, os nossos estamos a começar, mas os seus, os problemas europeus. É o segundo pilar que está em causa.

O terceiro pilar é o Estado Social. O Estado Social com a Saúde, a Educação, a Segurança Social, deu coesão e segurança ao país. Mal ou bem, com oposições dos vários partidos, vamos esquecer a espuma pois no essencial este Estado Social persistiu ou viveu durante 30 ou 40 anos e está em causa hoje porque não há recursos, há crise. Quando pegam nos jornais percebem logo na primeira página que há problema com o Estado Social conforme ele está hoje e como vai estar nos próximos dez anos porque os recursos são os que vocês sabem.

Finalmente e é a pior parte de todas: houve um consenso na política, um entendimento que foi feito entre a política, seja a política do governo central seja a das autarquias, com os negócios privados, com as empresas portuguesas privadas ou internacionais, com a banca e isto manteve-se. Isto ajudou a criar Portugal, a criar emprego, a permitir os negócios e a criar oportunidade económicas. Com a crise financeira dos últimos sete anos, com a crise de endividamento que se situa mais ou menos durante quinze anos de gastos de 10 mil milhões por ano ou mais. Façam as contas, como dizia o outro senhor Eng.º, não é?

Hoje já não é possível fazer negócio como há dez anos. Já não é possível fazer auto-estradas, ouswapscomo há cinco ou dez anos. Já não é possível fazer PPP como há 10 anos, ou 6 anos. Estes fenómenos que parecem e chamam-lhes de banditismo, criminosos, de promiscuidade, chamem-lhes o que quiserem, mas retirem a parte moral disto. Estas coisas colaram as partes, colaram o negócio da banca às empresas multinacionais, as autarquias, o governo central, os partidos centrais e isto conseguiu sobreviver. Simplesmente agora já não é possível, já não há dinheiro, já não há recursos, os próprios tribunais começam a ver e os credores que começam a fazer as contas e osswapse as PPP.

Esta espécie de "alegre viver” que durou 20 anos entre o negócio e a política já não é mais possível. Poderão dizer que estou preocupado com o facto de este negócio já não ser possível, mas é bom que assim seja porque vamos entrar assim num sistema de honestidade, de seriedade, de contas feitas, de transparência, em que já não há PPP que as pessoas não saibam muito bem o que diz lá dentro dos contratos, se as PPP seriam necessárias para o futuro. Não é por acaso que Portugal tem o maior número de PPP do mundo, tem dez vezes mais que a Espanha, tem 100 vezes mais que a Inglaterra. Foi uma loucura das PPP, foi como as auto-estradas, "deu-lhes uma”.

Estas coisas nunca são por estupidez, não pensem. Porque é que Portugal tem mais PPP, porque é que em Portugal há mais auto-estradas por metro quadrado e por habitante? Essas coisas têm sempre uma racionalidade. A minha preocupação é que esta racionalidade, apesar de moralmente condenável, mas aguentou a democracia e agora se nós vamos pô-la moralmente aceitável o que é que vai acontecer à democracia? Eu gostava de saber.

Esta é a razão da minha preocupação.

Vou-vos contar uma história de um minuto, para que possamos fazer a analogia. O que vou dizer é muito selvagem porque não quero comparar Portugal com a situação de que vos vou falar, mas apesar de tudo permite ver os termos. Quando as tropas aliadas americanas libertaram a Sicília e o sul de Itália, a Calábria e a região de Nápoles, viram imediatamente que havia um problema: quem é que vai governar a Itália? A Itália não tinha um currículo de vida democrático muito importante, tinha feito tudo, desde o fascismo, pró-nazi, anti-nazi, resistência, havia de tudo. A democracia estava partida e desfeita. Havia uma entidade com quem se podia discutir que se chamava Partido Comunista italiano que era forte e tinha feito um bocado da resistência, mas os americanos não estavam muito para aí virados, como podem imaginar.

Até que os americanos viram que havia outra organização que tinha poder e eram organizados, chamava-se Máfia. Chamaram a Máfia e disseram que podem fazer negócios, investir aqui e acolá, podem ir à América comprar tabaco, roupas e vender aqui, mas têm que garantir que a sociedade funciona e que há estradas e caminhos, ordem pública, segurança e a Máfia fez isso. Durante dez anos a Máfia estabilizou-se, dividiu-se, houve uma coisa chamada Camorra e outras das três ou quatro regiões. Depois a Itália e os americanos tiveram um problema medonho que tiveram de tratar durante 40 anos a seguir.

Não vos digo que estamos a viver com Máfia, não disse isso. Repito mil vezes que não disse isso, mas disse é que uma coisa má teve consequências positivas. Agora para que a coisa fique melhor, isto é, moralmente aceitável e transparente vai ser difícil conseguir o bom entendimento entre o mundo da política e o mundo da economia. Mas tem de conseguir.

Obrigado pela vossa atenção.

[APLAUSOS]

 
Hugo Soares

Queria em primeiro lugar, em vosso nome, agradecer ao Prof. António Barreto a brilhante exposição que aqui nos fez. Não só o retrato que não foi só a chapa foi também sobretudo a reflexão final com que nos brindou.

Abrimos agora a parte das perguntas e respostas. Começamos com o grupo Amarelo com Rita Mourato Villaverde.

 
Rita Mourato Villaverde

Boa tarde. Em nome do grupo Amarelo gostaria de agradecer a presença do Prof. António Barreto e a sua disposição em partilhar connosco o seu vasto conhecimento sobre o país. Desde já, muito obrigada.

Ao fazermos um retrato de Portugal verificámos que o povo que há muitos anos atrás era conhecido como um povo ousado, ambicioso, inconformista, tem agora uma imagem de um povo conformista, que perdeu a ambição e sem planos para um futuro a longo prazo. Mas ao fazermos essa mesma avaliação do país, verificámos que nem tudo é mau e nos últimos 30 ou 40 anos o país de facto progrediu na Saúde, Segurança Social, rendimento, bem-estar e na alfabetização.

Será a falta de ambição um problema crónico da sociedade portuguesa, ou deve-se ao facto de a sociedade não ter uma formação adequada para tal?

Obrigada.

 
António Barreto

Muito obrigado pelas suas palavras iniciais. Uma vez mais repito o meu prazer em estar aqui convosco.

Não aceito o epíteto de conformista e de passivo. Sou muitas vezes mais enfático nos defeitos do que nas virtudes, mais nos erros do que nos acertos, e pode ser que tenha dado ênfase excessivo aos aspectos críticos. Mas é assim, estamos aqui para olhar para o que está mal, não é para ficarmos rechonchudos com o que está bem.

Nós, nos primeiros 30 anos em que fizemos aquela espécie de correria com o fim da guerra, fim da ditadura, integração europeia, desenvolvimento económico, os retornados, a revolução, a contra-revolução, foi uma verdadeira cavalgada. A maior parte do que conseguimos fazer foi no bom sentido: mais coesão, mais solidariedade, mais cultura, mais literacia, mais responsabilidade. Os últimos dez anos é que foram maus e que para nós interessa obviamente o que estamos a viver que é muito difícil.

A ambição tem períodos, tem momentos. Onde posso jogar consigo é sobretudo em dois aspectos: por um lado a pobreza marca muito. Eu disse há bocado que ia começar por dizer banalidades. A pobreza marca muito a personalidade e Portugal é pobre há centenas de anos, há séculos, porque nada do que nos dava riqueza estava cá e estávamos na periferia ainda por cima. A pobreza é um dos aspectos; a razão essencial da emigração é a pobreza, é a principal, mas não é a única. A segunda é que, aí podendo concordar consigo, quase nada infelizmente depende das pessoas, do indivíduo.

Se alguém quer fazer alguma coisa em Portugal, o que lhe cai em cima é a burocracia, o Estado, as autorizações, os procedimentos burocráticos, as tradições, o "não pode ser”, o "não se faz assim”, o "é feio fazer”, entre outros. Parece que qualquer ousadia das pessoas, de cada um, a imaginação, é imediatamente punida, esta espécie de enorme centralidade em que vivemos. Quando conto a amigos meus estrangeiros que é preciso que o Governo decida os horários de uma escola em Trás-os-Montes ou decida os horários da abertura de um centro de saúde em Alcabideche ou Vila Flor. Eles olham para mim estupefactos. Como é que um ministro pode tomar conta de 2 milhões de pessoas, de 200 mil professores, de 50 mil funcionários? Não é possível.

Esta espécie de punição sistemática dos indivíduos, porque a ambição de você fala é um marco individual. Essa coisa da ambição colectiva, da ambição de um povo, é uma soma de ambições individuais. A ambição é cá dentro, é individual, não é colectiva. É a este individual para o qual a sociedade portuguesa é madrasta. Porque este indivíduo noutro sítio qualquer vinga, não é punido, não é castigado. Se nós temos alguma revolução a fazer é esta para o futuro.

 
Hugo Soares
Maria Desidério do grupo Azul.
 
Maria Desidério

Antes de mais, boa tarde a todos. Boa tarde, Dr. António Barreto. O senhor representa mais uma razão de esta ser uma universidade de formação política e cívica em Portugal.

Desde o 25 de Abril que ocorreu uma mudança de paradigma da sociedade portuguesa, dado que a actualidade não é de todo idealizada no PREC. Quais são os factores históricos que na sua opinião tiveram maior influência nesta alteração de paradigma?

 
António Barreto

A abertura ao mundo, a abertura ao exterior, sociedades industriais europeias, países europeus, primeiro a EFTA e depois a União Europeia. Às vezes tenho a noção que a sociedade portuguesa está cansada de si própria, isto é, que já não encontra dentro de si própria elementos dinâmicos, factores dinâmicos de desenvolvimento. E a alterações que você reputa dizendo que são alterações de paradigma dever-se-ão em primeiro lugar ao estímulo exterior e em segundo ao pluralismo.

Eu acho que um azul e um vermelho, um branco e um preto, um aos quadrados e um às riscas, vivem melhor e fazem melhor do que todos iguais. Aliás, nas sociedades monótonas, autoritárias, totalitárias, tendencialmente as pessoas vestem-se todas de igual. Lembrem-se do que tivemos o mais próximo que foi na China ou na Coreia do Norte agora a tendência de pôr as pessoas a mexerem-se da mesma maneira. Aliás os da Coreia são especialistas em fazer os gestos ao mesmo tempo, em fazer aquela sincronização dos espectáculos que conhecemos da televisão.

Portanto, se tivesse de ir buscar fontes para esse novo paradigma, vamos imaginar: estímulo externo, abertura da sociedade, pluralismo, mas ainda não suficientemente à força individual, ao indivíduo. Em Portugal, o indivíduo é punido por uma espécie de lamentação colectiva, de esquerda ou de direita, ninguém pense que o indivíduo é à direita, não é. Aliás, os direitos individuais começaram por ser sublinhados no século XVIII e o individualismo era revolucionário na altura. Há uma espécie de sentido de colectivismo. Porque é que as correntes mais importantes de direita europeia são todas anti-liberais? Por causa do individualismo.

Penso que se esperarmos uma vez mais e se esperarmos algo para esse seu novo paradigma é o papel do indivíduo na sociedade.

 
Hugo Soares
Muito obrigado, Professor. Paula Rocha do grupo Roxo.
 
Paula Rocha

Boa tarde. Em nome do grupo Roxo saúdo o Prof. António Barreto e agradecemos desde já a transferência de conhecimentos.

No começo desta aula surgiu-nos a seguinte questão: historicamente, assistimos a uma mutação dos partidos políticos e a uma aparente difusão ideológica. Não acha que este aspecto poderá confundir também ideologicamente os eleitores, conduzindo a uma fraca participação cívica? Obrigada.

 
António Barreto

Acho que sim. Não tenho muito mais a dizer. Nós assistimos a uma espécie de reforço da ditadura económica em 20 ou 30 anos. A margem de liberdade política e cultural dos partidos políticos é muito estreita, é muito reduzida, porque a pressão, por exemplo da finança, do sistema económico, dos grandes compromissos.

Há um grande compromisso com a Segurança Social, com a Educação e com a Saúde. Os grandes serviços públicos tudo isto diminui muito consideravelmente a margem de manobra, ou de imaginação política.

Depois, a massificação da política e a Comunicação Social. A comunicação rápida, transparente, imediata, criou um fenómeno para o qual ainda não há antídoto que foi a desvalorização de todos os mecanismos fundamentais da democracia. Um governo eleito perde a legitimidade em 15 minutos, basta uma sondagem dizer ou mesmo um político a dizer que já não têm legitimidade. Aliás, foi das coisas constrangedoras a que assisti nos últimos meses.

Houve um período em que toda a gente, menos as pessoas do Governo, dizia que já não tinham legitimidade. Perguntava porquê? Mas não têm votos, um parlamento, não têm grupo parlamentar, uma maioria, um mandato definido? Nada disso contava. O que contava eram as questões do salário, do dinheiro, dos subsídios, o desemprego e as manifestações.

A perda de valor dos critérios democráticos é uma alteração das regras políticas. O desaparecimento da ideia de mandato é uma decadência, uma degradação da ideia política e da ideia democrática. Porque a ideia de um mandato, de ser eleito para fazer isto e ao fim de quatro anos, ou dois, ou cinco, sou julgado isto é uma ideia forte de democracia. Ajuda a alimentar os partidos políticos e as diferenças entre cada um. Se você é eleito hoje e a partir de amanhã perguntam-lhe pelas contas e está aqui uma manifestação ou uma sondagem que diz o contrário e se perde a legitimidade, a partir daí é difícil.

Isto faz com que os partidos que trabalham para o voto trabalhem para a televisão, trabalhem para o tempo de antena, aproximam-se cada vez mais e têm cada vez mais a mesma linguagem. A linguagem dos políticos hoje não é uma linguagem reflectida e pensada, é uma linguagem fabricada por profissionais. Portanto, têm de ter o menos arestas possível, ser o mais redonda possível, o mais aproximada possível e tudo isto a meu ver conduz à degradação da ideia de democracia e da diferença política. Estou de acordo consigo.

 
Hugo Soares
Mais uma vez obrigado. Hugo Arrimar do grupo Laranja.
 
Hugo Arrimar

Antes de mais, gostaria de desejar boa tarde a todos os presentes e saudar o Prof. António Barreto e agradecer-lhe pela sua presença.

Fez um balanço positivo destes últimos 30 anos. Houve coisas más, menos boas, outras boas, mas fez um balanço positivo.

Gostaria de saber o que é que, mesmo assim, nos deixou tão atrás em relação à restante Europa. Que pilares fundamentais é que nos faltaram para estarmos assim tão distantes da restante realidade europeia.

 
António Barreto

Volto ao princípio: pobreza. Também um pouco a periferia. A periferia hoje já não é o que era, com a Internet, os telefones, a rapidez e os aviões, mas ainda é periférica. Quando vê que certo tipo de investimento que se faz em Espanha, ou em Praga, ou na Polónia, porque estes dois últimos estão mais no centro da Europa do que Portugal, isto faz sentido do ponto de vista da periferia.

Em terceiro lugar, a capacidade média da educação e da formação profissional dos portugueses está na origem de uma prestação muito menos interessante do que poderia ter sido. A formação média dos portugueses é ainda hoje ridícula. Não é só a formação básica, mas sim a formação cultural. A formação cultural dos portugueses era e ainda é hoje muito deficiente. Não vos falei de educação nem talvez seja altura de começar pois o assunto é muito longo. A ideia de que a educação serve para formar profissões é uma ideia maligna. À cabeça de tudo, a educação é para dar cultura às pessoas, cultura geral. O 12º ano devia ser não uma fase de escolha profissional como em tantos casos já é, mas sim o de acabamento da primeira fase de cultura geral.

Se eu pudesse e mandasse, o 12º ano era igual para toda a gente. Já há quem faça 12º ano em Relações Internacionais, ou em Recursos Humanos. Que parvoíce é esta? O 12º ano deve ser uma coisa geral, uma coisa genérica. Faria o mesmo com o primeiro ano da universidade, que fosse ainda de cultura geral. O que distingue duas pessoas é a cultura geral não é a formação em electricidade, nem a formação em matemática, é a cultura geral que os distingue.

Nós tivemos muito pouca cultura geral, pouca educação profissional e tecnológica. Tivemos uma estrutura industrial muito frágil cuja fragilidade só se verificou ao fim de 20 anos. Houve um período em que foi possível enganar, foi possível trabalhar com a mesma máquina 11 horas, depois 16 horas, depois 24 horas, não pode é ser mais do que 24 horas, tem de ser uma nova máquina, uma nova empresa, uma nova indústria.

Foi nesta transferência de usar novos recursos e novas empresas que as coisas falharam.

A falta de individualismo foi outra razão e finalmente, a demagogia. Enquanto que as outras eram factores estruturais, isto é um factor político. Houve em 30 anos um recurso intensivo e permanente à demagogia. Isto é, oferecer o que não se tem, oferecer a mais, oferecer, dar e vender ilusões. Ou seja, dada instabilidade do poder político em 30 anos, todos os partidos sentiram necessidade de sistematicamente aumentar a sua própria demagogia para ganhar votos e suporte. Isto foi uma espécie deself fulfilling prophecy. A demagogia aumentou-se e chegámos ao estado em que chegámos.

A pergunta que você fez é muito complicada, e as minhas respostas não estão à altura da pergunta que exigia mais reflexão, mas é a minha resposta numa primeira aproximação.

 
Hugo Soares
Obrigado, Professor. Nuno Lopes do grupo Castanho.
 
Nuno Lopes

Boa tarde, Prof. António Barreto. Quero agradecer aqui a sua presença na Universidade de Verão e quero dizer-lhe que fez um óptimo retrato de Portugal e que estou certo ser bastante benéfico para todos.

Indo agora de encontro à minha questão, peço-lhe já desculpas se me estiver a afastar do tema mas estou certo que conseguirá dar a sua opinião que é bastante própria e que desde já saúdo.

Gostaria de saber, qual a sua opinião num momento em que fazer política e sobretudo política partidária nos dias de hoje é só por si um crime público. Como podemos interpretar estas avalanches de candidatos independentes às eleições autárquicas? Gostaria também de saber se acha que talvez o mau comportamento dos partidos políticos leva uma taxa de abstenção maior e se o facto de os candidatos serem independentes pode ou não afectar essa mesma taxa de abstenção.

Muito obrigado.

 
António Barreto

Não tem idade para saber isso, mas há 30 anos que defendo as candidaturas independentes. Vou tentar explicar porquê. Se a política portuguesa estivesse entregue aos independentes no parlamento ou nas autarquias Portugal era um caos absoluto. Porque as organizações políticas, os partidos, são factores de racionalidade, de sistematização das ideias e dos programas e isso são factores de estabilidade, e é bom que assim seja.

Considero que qualquer parlamento com uma maioria de independentes, ou um número elevadíssimo deles, é meio caminho para o caos. Simplesmente os partidos políticos portugueses fecharam-se de tal maneira neste 30 anos sobre si próprios, o simples facto de terem proibido na Constituição que houvessem candidaturas independentes, o que foi verdade durante muitos anos e acho que ainda é no parlamento, e de as candidaturas independentes terem dificuldades durante tanto tempo, mostra bem o que eu receio e o que foi uma espécie de auto-protecção.

Fizeram da Constituição uma espécie de escafandro para se protegerem.

Obviamente que mais tarde ou mais cedo iam pagar as favas e estão a pagar agora. Não sei se vai haver muitos eleitos, imagino que não, por enquanto. Mas se não houver da parte dos partidos políticos uma reacção creio que o número de independentes aumentará. E não é seguro que se aumentar muito sejam um bom factor para a mudança ou estabilidade do regime.

Pode haver, todavia, uma consequência benéfica que é os partidos começarem a perceber o que se está a passar. Porque é que os partidos não podem escolher as melhores pessoas?

Pode ser que num distrito eleitoral, numa autarquia, num município ou numa freguesia, os melhores ou o melhor não sejam de um partido. Por que não os vão buscar?

O que é que isto quer dizer? Se o crescimento dos independentes actualmente levar os partidos a melhorar os seus critérios de selecção, de recrutamento, a abrirem-se ao exterior, a funcionarem na sociedade aberta, então os independentes terão cumprido a sua função.

Se com isso espero liquidar os partidos? No dia em que eu fizer isso também liquido o sistema político.

 
Hugo Soares
João Paulo Ameixa, grupo Verde.
 
João Paulo Ameixa

Boa tarde, Professor. Antes de mais o grupo Verde queria agradecer pela sua presença e restante participação e apresentação.

A PORDATA, desde que foi fundada há três anos atrás, tem vindo a crescer cada vez mais em Portugal, tornando-se hoje em dia num portal que é quase obrigatório para qualquer estudante ou curioso. Portanto, o grupo gostaria de saber qual é a sua opinião sobre o impacto que a PORDATA pode causar na sociedade e em especial no jovens portugueses.

Obrigado.

 
António Barreto

Você é atrevido, porque me vai obrigar a falar bem de uma coisa que eu fiz. [RISOS]

O primeiro fenómeno que levou à PORDATA foi que há 20 ou 30 anos estava com uma discussão muito grande com a minha mulher em que eu dizia que o Napoleão tinha morrido em 1918 e ela dizia que ele tinha morrido em 1917, ou ao contrário, não interessa. A discussão, muito acesa, durou ainda meia hora e estávamos com argumentos cada vez mais convincentes a definir o nosso ponto de vista. Até que um de nós disse: "espera aí, vou ver à enciclopédia”, estava lá a data e a conversa acabou.

É uma pequena anedota. O objectivo essencial da PORDATA é reduzir o equívoco perante os factos e aumentar o espaço de opinião. Não vale a pena perdermos tempo a dizer que achamos que há tantos homens quanto mulheres, ou que as mulheres nascem menos que os homens, ou que Portugal tem x% de PIB, pois perdem-se horas e horas com estas discussões. Ainda há dez anos aconteceu no Parlamento e o Carlos deve-se lembrar disso. Em Portugal há dois números de desemprego. Há o número do inquérito permanente ao desemprego e há o número do inquérito dos centros de emprego; um é do Ministério do Trabalho, outro é do INE.

Um dos números é sempre maior do que o outro, porque são as condições de recolha da informação. O que quer dizer que no Parlamento tem havido discussões nos últimos 20 anos, vivíssimas, acesas e acutilantes, em que a oposição cita sempre o número que tem mais desemprego e o Governo cita sempre o outro o de menos desemprego. Ambos sabem o que estão a dizer, que os números são diferentes e que as razões para os números serem diferentes são aquelas. Mas eles não estão a falar um com outro, estão a falar para a televisão e para as pessoas que estão em casa e que não conhecem bem estas pequenas diferenças.

Ora bem, o que a PORDATA quis fazer é dar um contributo para que a realidade factual esteja acessível. Infelizmente não há dez milhões de consumidores da PORDATA em Portugal, mas já há bastantes e contribuir para que a parte factual seja comum, seja pouco discutível, vamos então começar a discutir o que é que realmente é importante que é a opinião para lá disso. Perante um facto eu quero é afastar o facto e agora vamos discutir as opiniões. Creio que até hoje a PORDATA tem dado um pequeno contributo para isso.

Como sabem já está disponível a de portugueses, europeia e municipal agora desde há poucos meses e dentro de seis meses vai estar a mundial, temos a PORDATA quase pronta para 200 países, 600 indicadores e tem sido um trabalho enorme. Há dois anos que está a ser feito, é muito difícil e muito penoso, mas vamos ter finalmente daqui a algum tempo.

Com isso, a Fundação Francisco Manuel dos Santos vai dar por cumprida esta primeira tarefa, porque temos outras, nomeadamente das opiniões e dos direitos. Estamos a preparar um portal que é muito diferente deste, que é um portal de direitos e deveres em que cada um de nós pode ir tentar saber quais são os direitos e deveres em Portugal com o regime jurídico que temos.

Portanto, queremos depois numa segunda fase fazer isso. De qualquer maneira a PORDATA agradece as suas palavras e se quiserem para o ano, Carlos Coelho, podiam fazer que a PORDATA enviasse aqui um ou dois formadores e passaria uma hora ou duas horas com um grupo de vocês a dar-vos os truques especiais para utilizarem a PORDATA ao melhor possível. Se quiserem e não custa nada.

[APLAUSOS]

 
Hugo Soares
Agradecendo, desde já, não só a disponibilidade do Professor mas também da PORDATA e agradecendo também a pergunta que antecedeu porque justificou esta resposta do Professor, dava a palavra ao grupo Cinzento ao Diogo Cangueiro.
 
Diogo Cangueiro
Desde já queria agradecer ao Dr. António Barreto por nos ter presenteado com esta palestra fabulosa. Dr. António Barreto, na sua opinião acha que não somos um país de referência como fomos no passado? Faz sentido remeter os orgulhos nacionais a tempos idos dos Descobrimentos ou existem hoje razões que nos devem orgulhar da multicolectividade?
 
António Barreto

Tenho dificuldade em partilhar a ideia de país de referência. Tenho muito receio da vaidade, das pessoas, dos grupos, dos países, é sempre má conselheira. Lembro quando tinha dez anos tinha uns mapas da Europa feitos pelo regime de então. Era a Europa toda a cinzento e depois tinha Portugal, Angola, Moçambique e as restantes colónias portuguesas a vermelho escuro por cima para mostrar e a legenda era que Portugal não era um país pequeno.

O pior de tudo é nós enganarmo-nos a nós próprios, pior que enganarmos os outros. Devo dizer que não tenho orgulho, mas sim admiração, por Portugal. Eu tenho admiração por um país que sendo tão pequenino e com tão pouca gente tenha sobrevivido cerca de mil anos, feito o que fez, andado por onde andou, feito as sete partilhas do mundo, inventado uma língua, uma maneira de ser, tenha colonizado, vivido com aqueles que colonizou. Tenho admiração por esse povo: povo pequenino, tenaz, muito sofrido, que sofreu dos maiores, mais ricos, mais fortes, dos outros países - eu tenho admiração por esse país.

Gostava muito de continuar a ter admiração no futuro mas provavelmente não estou cá. É só uma questão de linguagem. Será que Portugal conseguirá voltar a merecer admiração no futuro? É um problema político. Diria que sim, como programa político, é um programa para o futuro. Nos últimos anos não nos temos portado muito bem. Vamos tentar merecer ter admiração no futuro também.

 
Hugo Soares
Obrigado. Susana Reis do grupo Bege.
 
Susana Reis

Boa tarde. Em nome do grupo Bege, começo por cumprimentar o Dr. António Barreto e evidenciar a curiosidade que cada um dos elementos deste grupo sentiu com o título da sua comunicação. Sendo o título "Um retrato de Portugal” o mesmo remeteu-nos para algumas generalizações existentes como por exemplo que o povo português é comodista, é preguiçoso, só gosta de Portugal quando vai para o estrangeiro e seriam ínfimos estes exemplos.

Independentemente desta situação e se faz sentido ou não o uso destas generalizações, gostaria de pedir se faz favor ao Dr. António Barreto que se tivesse de fotografar o que há de melhor e o que há de menos bom na sociedade portuguesa, o que escolheria para fotografar?

Obrigada.

 
António Barreto

Quanto à primeira parte pareceu-me que você era contrária a esses epítetos generalistas, eu sou fortemente e quando me dizem que Portugal é um "país de brandos costumes” escolho logo dez episódios de enorme violência para mostrar que não. Quando dizem que os portugueses são inteligentes escolho logo dez burros para mostrar que não. Quando dizem que os portugueses são comodistas escolho logo dez que são o contrário, que são enérgicos e fazem "trinta por uma linha”. Em Portugal, ou no resto, que haja este tipo de características chamados de "carácter nacional”, isso não existe.

Existem circunstâncias, momentos históricos em que certo tipo de comportamento é mais frequente que outro. Mas isto não existe e não faz sentido pensar assim. Sabe que quando o Carlos Coelho me pede para dizer o animal e o livro, fico sempre irritado porque me apetece sempre dizer 14 livros e 35 animais. Mas para isso tem de ser um.

O retrato tem de ser uma coisa, um sítio ou uma situação?

 
Susana Reis
Pode ser uma situação.
 
António Barreto

Pode, então vou dizer-lhe a situação. Vou começar pela situação que é o pior em Portugal e que mostra isso realmente, que é muito actual: o desmazelo que o privado e o público tratam a floresta portuguesa, o descuidado, a desprotecção e a irresponsabilidade.

Tudo o que podem pensar sobre isto não vale a pena acrescentar nada, basta ouvir as televisões todos os dias: a ausência de prevenção, de investimento, de esforço.

Há outra coisa, uma das razões destes incêndios, destas situações que vivemos todos os anos, é a proliferação da floresta, a fragmentação da propriedade e as circunstâncias em que a floresta se encontra. Em Portugal o Estado manda em tudo, não deixa quase ninguém viver, ocupa-se de tudo e de todos. O Estado faz coisas boas, mas faz muitas coisas más. Em Portugal a superfície pública da floresta é a mais pequena da Europa. Na Alemanha mais de metade da floresta alemã é propriedade pública, é do Estado, do povo alemão. Nos Estados Unidos, país liberal por definição, metade da floresta americana é pública.

O que está em vias de estar a arder, o famoso Yosemite e o Parque Nacional que tem centenas de milhares de hectares é público e estão a ver se o incêndio não chega lá dentro. Portugal nacionalizou tudo o que havia para nacionalizar: cabeleireiros, quiosques, padarias - as coisas que se fizeram em Portugal nos últimos 30 ou 40 anos. Portugal ainda tem o Estado com intervenção em tudo: na cor dos carros, na cor das facas com que as pessoas cozinham em casa, o Estado ocupa-se de tudo.

O Estado nunca se ocupou, primeiro, do território que é seu, que são os grandes parques nacionais, a grande floresta pública. Mas a maior parte da floresta que deveria ser pública, tratada publicamente com guardas florestais e pessoas permanentemente o ano todo em vigilância e cuidado, e tratadas as matas e os acessos às águas, o Estado não faz. Porque entretanto nacionalizou a padaria, o cabeleireiro e essas coisas. Esse é o retrato de pior.

O retrato de melhor, há muitos bons, mas eu não resisto: é Alcobaça. O Mosteiro de Alcobaça é das coisas mais bonitas do mundo. Vão, quem não foi a Alcobaça vá, vá sozinho, ou com a namorada ou namorado. Vão sozinhos, fiquem lá dentro, umas quatro horas a ver a nave central, as naves laterais, a sacristia, a cozinha e a sala do capítulo. Alcobaça é de uma beleza prodigiosa, inesquecível e depois parem uma hora dentro da Nossa Senhora da Conceição à entrada na nave central e fiquem ali.

Há aqui alguém de Alcobaça? Que sorte! Sabe daquilo que estou a falar, não sabe?

 
Hugo Soares
Muito obrigado. Agora pelo grupo Rosa, Sara Ramos.
 
Sara Ramos

Boa tarde. Em nome do grupo Rosa, gostaria de agradecer a presença do Dr. António Barreto. Muito obrigada pela contextualização histórica, pois é aprendendo com o passado que conseguimos enfrentar melhor o futuro.

Num artigo que escreveu para a revista "Ter Opinião” abordou a temática da liberdade e do despovoamento e passo a citar: "A liberdade nasce na cidade, nas ruas e cafés, nas suas grandes empresas e nas suas escolas. A liberdade não nasce no campo, não se desenvolve onde toda a gente se mete com toda a gente. A migração do campo para a cidade foi e é natural e corresponde a uma procura de bem-estar. Só déspotas podem querer obrigar as pessoas a viver no campo, de resto o nosso problema não é o despovoamento, é o abandono. Este sim deve ser evitado.”

Que medidas acha que este Governo ainda não tomou para que o abandono possa ser evitado?

Obrigada.

 
António Barreto

Não sei se outras pessoas leram ou tiveram conhecimento desse artigo, mas de qualquer maneira o artigo vem muito a propósito de um velho vício da linguagem política propagandística, que é prometer criar raízes. Em campanhas eleitorais, sejam parlamentares sejam autárquicas, é muito frequente dizer que nós vamos fazer com que as pessoas possam criar raízes, que as pessoas possam crescer no sítio onde nascerem, etc. Fixar, o termo é fixar populações e eu inscrevo-me radicalmente contra tudo isso.

Se eu tivesse sido fixado estava hoje a viver em Vila Real onde nasci, comecei a viver e por ali ficava. A fonte da liberdade é essa, a deslocação, o movimento, uma pessoa poder mudar de sítio, mudar de emprego, de trabalho, de vida - isto faz parte da liberdade. Quase todas as pessoas que fazem promessas para fixar populações ou criar raízes, normalmente, depois de serem eleitos, se forem, esquecem-se, porque não vale a pena lutar contra o inelutável.

Por isso digo que em Portugal o abandono é que é trágico, que é deixar as condições degradarem-se, as aldeias, os rios, as florestas e vales. Conheço sítios no mundo que não têm pessoas, onde não vivem pessoas, ou vivem muito poucas, mas que são sítios prodigiosamente bem cuidados, porque as florestas são bem tratadas, bem cuidadas. Porque as pessoas podem ir trabalhar na floresta durante o dia e depois voltar a casa para a aldeia, ou para a cidade. A vinha pode-se fazer do montado, muita agricultura se pode fazer não vivendo como se vivia há 100 ou 200 anos, espalhados no campo.

Não creio que tenha havido, deste Governo nem dos anteriores - quando a ouvi dizer "este Governo”, pensei "oh diabo, não é diferente dos anteriores” - actuação que permita dizer que os governos estão a cuidar ou a lutar contra o abandono. O trabalho na floresta, em primeiro lugar, é essencial e muito pouco tem sido feito. O estudo científico, técnico na floresta, a criação de corpos de intervenção na floresta, sejam técnicos ou científicos, ou de protecção e de vigilância, tudo isto tem sido muito pouco feito.

Investir nos regadios, por exemplo, reinvestir na regulação das águas fluviais das vias de ligação entre as fluviais e fontes de água para abastecimento ou consumo agrícola, tudo isto são coisas que não têm sido feitas e que continuam a ser desmazeladas. O caminho de ferro é um bom exemplo de tipo de estrutura que pode manter o país inteiro ligado com custos diferentes, com agressões diferentes à natureza, ao ambiente, à floresta. Como se sabe, o caminho de ferro está a ser sistematicamente abandonado e fechado.

Portanto, não conheço nos últimos anos, muitos anos, neste Governo ou nos anteriores, medidas ou actuações particularmente preocupadas com a luta contra o abandono, que não é a mesma coisa que despovoamento.

 
Hugo Soares
Obrigado. Ruben Santos do grupo Encarnado.
 
Rúben Santos

Boa tarde, Prof. Dr. António Barreto. É uma honra poder contar com a sua presença aqui e ouvir as suas palavras.

O Deputado Carlos Coelho introduziu, dizendo que dispensava apresentações e deixe-me dizer que concordo plenamente. Fiquei muito feliz assim que soube que o Prof. Dr. ia estar presente porque eu nas minhas aulas da licenciatura de Administração Pública já tive muitas vezes que recorrer a documentos seus, tanto da PORDATA a par do INE e do Eurostat, para além das publicações várias, dos ensaios, como aqueles livros pequeninos da Fundação.

Já agora, aproveitando as palavras do Prof. há pouco, digo ao Deputado Carlos Coelho que vou-me sentir muito invejoso de os meus colegas do próximo ano terem o privilégio de poderem ter o workshop da PORDATA.

 
Carlos Coelho
Combinamos e você vem também.
 
Rúben Santos

Pronto, obrigado.

O tema sobre o qual vou fazer a pergunta ao Prof. Dr. António Barreto, prende-se com a agricultura. Referiu que Portugal possui maus solos agrícolas e eu, se me permite, dos primeiros documentos que analisei quando entrei na universidade foi logo no primeiro semestre na cadeira de Território e População, em que analisei Portugal pelo seu retrato social. Ficou-me na memória um episódio que lá aparecia de um investidor de origem holandesa que investiu no Alentejo e contratou um conjunto de especialistas da Universidade da Califórnia para analisar o solo e o clima.

Ora bem, todos sabemos que o Alentejo é conhecido como o celeiro de Portugal. O que é que se plantava lá? Trigo, centeio e afins. Lembro-me desse investidor, após ter pedido essa análise técnica, os técnicos dizerem-lhe: "Olhe, isto aqui o mais indicado é a uva e vai ter de durante cinco anos, tudo o que o solo der, voltar a colocar lá para fertilizar o solo.” As pessoas daquela vila que era uma vila interior com uma cultura que está profundamente enraizada não perceberam e estiveram contra esse empresário porque pensaram que ele estava a deitar ao lixo o que Deus dava.

A verdade é que passados uns anos de utilização dessa técnica, naquelas terras começou-se a produzir dos melhores vinhos do Alentejo. Isto para explicar que mesmo ainda nos dias de hoje, estamos a falar de cerca de 7 anos atrás, ainda há esta cultura muito rudimentar da agricultura. Pelo menos é do senso comum que Portugal é conhecido como a laranja do Algarve, a pera do Oeste, a maçã de Alcobaça, a uva do Alto Douro e a castanha de Trás-os-Montes. A minha pergunta é: teremos mesmo maus solos agrícolas, ou estarão as culturas desenquadradas com o clima e com o solo?

Aproveitando a sua experiência como Ministro da Agricultura e das Pescas no Governo de Mário Soares e como deputado do PS em 87-91 que penso que apanhou o Governo do Prof. Cavaco Silva, queria perguntar se Portugal tem mesmo mau solo agrícola ou se tem culturas desenquadradas. Também queria fazer uma pergunta ao Dr. António Barreto, mas em que o Dr. Carlos Coelho se quiser também pode dar alguma explicação aproveitando a sua experiência como eurodeputado. Tenho a sensação do que li até hoje que a PAC desde 1986 com a entrada de Portugal na CEE, sempre foi extremamente prejudicial para Portugal que ao nível europeu das quotas de agricultura e pescas ficou sempre prejudicado.

São duas perguntas numa só, se me permitir, se não permitir responde só a uma. Se os solos são desenquadrados, ou são mesmo maus, e se a PAC prejudica Portugal e de que forma é que podemos dar a volta a isso e defender os nossos interesses na Europa que temos de defendê-los.

 
Hugo Soares
Deixa-me só dizer que agora já está, mas em respeito para com os outros grupos convinha que fizessem apenas uma pergunta em cada intervenção.
 
António Barreto

Engraçado que você se lembra desta história do agricultor, mas corrija porque ele era dinamarquês. Ele era especialista em cultura de chá na Malásia e apaixonou-se por uma rapariga economista americana. Meteu-se num barco e foram correr o mundo à procura do paraíso. Foi exactamente os termos que eles usaram um para o outro na altura. Disse ela: "É estranho que tenhamos parado na Vidigueira, que estavam 47º C de calor nesse dia, num sítio completamente seco e árido”. O Hans, o marido, virou-se para ela e disse: "É aqui o paraíso”. Ela disse que não era a ideia que ela tinha do paraíso mas ficou.

Há-de reparar que você diz e lembra-se bem que ele cultivou floresta, pinheiro, oliveira e uva. Não cultivou trigo. É engraçado que há bocado você começou a enumerar o que se conhecia de Portugal e disse: laranja, pera, uva, castanha, azeitona. Já reparou que são tudo árvores, tudo arbustos, não há aqui agricultura no sentido tradicional, não aqui batata, milho, trigo, centeio, cevada, esse género de produtos.

As nossas más condições genéricas são para essa agricultura, as nossas boas condições genéricas são para tudo o que é arbustivo e tudo o que é florestal. Depois há excepções e há sítios em Portugal em que de facto há boas excepções e que há bons rendimentos onde há bom regadio.

Olhe, ali em certos sítios chegados, Alqueva, Sorraia, Caia, onde há bom regadio e por exemplo consegue-se fazer milho em muito boas condições tão boas como na França, ou nos Estados Unidos. Mas são porções minoritárias e muito pequenas do nosso território.


Gosto da sua expressão "culturas desenquadradas”. Nos últimos dez anos ou mais, há uns sinais muito interessantes de novas empresas agrícolas que estão a crescer em Portugal e que estão a fazer este género de produtos, estufas, culturas forçadas cobertas de plástico ou cobertas com estufas. Frutas e hortofrutícolas que podem estar prontos no mês de Janeiro, Fevereiro ou Março, muito antes dos produtos europeus e podem exportar directamente.

Isto está a ser um êxito, este género de produções. Portanto, há um espaço grande para empresas modernas, investimentos modernos, nos produtos enquadrados - para utilizar a sua expressão - e não os desenquadrados que foi o que fizemos até agora. Durante 50 anos produzimos trigo e mais de metade do trigo que se produzia em Portugal era totalmente não rentável. Todo ele era subsidiado porque não havia rentabilidade física. Isto mede-se em sementes, ou toneladas por hectares, e Portugal produzia por cada semente deitada ao solo quatro ou cinco sementes de trigo. Na Alemanha, na França, na Polónia, não eram quatro sementes, eram 15 ou 20. Ou seja, com o mesmo esforço, o mesmo dispêndio, o mesmo trabalho, os outros países produziam vinte vezes mais e não era uma questão de inteligência ou jeito, é que os solos não prestavam, os solos e o clima não serviam.

Portanto, há espaço para aumentar a produção agro-alimentar, a produção florestal, não tenha qualquer dúvidas disso, desde que repensados, refeitos, com empresas modernas, com ciência e com técnica. Nós hoje finalmente temos bons vinhos em qualquer sítio do mundo. Os vinhos durienses e os vinhos do dão, alguns vinhos alentejanos e alguns da estremadura, são vinhos que estão em qualquer sítio do mundo em boas condições porque trouxeram técnica. Só sabe bem fermentar vinho - como sabem o vinho é fermentado - quem usa técnica.

Antigamente dizia-se "que grande pomada, tem picão!”; o picão é aquele gás que às vezes está nos vinhos e é puramente vinho mal fermentado e o vinho mal fermentado parece efervescente. E nós cá dizíamos "que grande pomada”, mas o vinho do produtor em geral não prestava para nada. Há 25 anos não havia quase vinho engarrafado português. Se forem ao supermercado e forem comprar vinho e virem de média e alta qualidade, começarem a ver os do Douro, do Dão, do Alentejo, têm 12 anos, ou 15, ou 8. Não havia Esporão há 30 anos, não havia vinhos da Quinta do Crasto, do Vale Meão, da Quinta do Vallado; estes vinhos não existiam simplesmente.

Isto foi o grande progresso da cultura arbustiva, uma vez mais.

Quanto à PAC, você fez a pergunta e respondeu: a PAC existiu até agora para proteger a terceiros e para garantir rendimentos aos produtores de gado bovino, leite, manteiga, carne, trigo, milho, centeio, naquelas condições de produtividade, de fertilidade dos solos, naquelas condições existentes europeias e não nas portuguesas.

 
Carlos Coelho

Muito bem, acabámos a parte das perguntas obrigatórias. Vamos entrar na parte das perguntas do "Catch The Eye”. Quem quiser fazer perguntas levanta o braço para que o Hugo e o Nuno possam tomar nota.

Entretanto, os ex-alunos da Universidade de Verão podem seguir estes debates através da net e, quando há possibilidades, de formular perguntas. Tenho duas perguntas breves. Da Teresa Luísa Silva que foi participante em 2008 e que diz o seguinte: "transcrevo as suas palavras na entrevista à Antena 1 em Julho passado. Passo a citar o que disse:todos os políticos e gestores de empresas públicas que lesaram o Estado devem ser responsabilizados, todos os nomes devem ser tornados públicos, não para que sejam levados a Tribunal e presos, mas sim para que nunca mais regressem à política. Que Estado Social é o nosso que não repudia veementemente a falta de profissionalismo e correcção por tudo o que fazemos? Como caracteriza tamanha brandura, serenidade e negligência pelo que se faz de mal? Temos tanto orgulho na pátria, na bandeira, no hino, porque não temos orgulho de não fazer bem feito, de não ignorar tamanhos erros que nos vão fazer pagar por tantos anos?

E o Francisco Miguel Sousa que foi aluno em 2009 diz o seguinte: "Caro Prof. Dr., desde já os parabéns pela sua visão independente e íntegra sobre a sociedade e a política portuguesas, algo bastante raro hoje em dia, infelizmente. Desta forma, gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre a integridade em Portugal. Qual é a sua perspectiva pessoal sobre o destino dos processos das possíveis individualidades suspeitas no envolvimento dos contratosswapou da supervisão da banca portuguesa nos casos BPI e BPN. Devem estas individualidades serem julgadas nos tribunais, ou resumindo apenas pelas comissões de inquérito?

 
António Barreto

Em relação à primeira pergunta, repito em certo sentido: à política o que é da política, à justiça o que é da justiça. Tentar criar processos judiciários a quem se engana ou a quem não acerta ou a quem faz promessas não faz sentido, não fa qualquer espécie de sentido. A Justiça serve para julgar quem tem comportamentos ilícitos: quem rouba, quem mente, quem engana, quem defrauda, expressamente, deliberadamente, com dolo.

Portanto, uma grande parte dos comportamentos políticos irresponsáveis são comportamentos que deveriam ser politicamente responsabilizados e que, por exemplo, os partidos políticos não deviam proteger. Há certos comportamentos e certos políticos que por irresponsabilidade política não deviam ter a protecção dos próprios políticos que julgam que assim se protegem a si próprios. Quanto aos outros comportamentos são comportamentos de facto e para os quais o único meio é a Justiça. A dificuldade está na averiguação.

Os casos mencionados, de dois ou três bancos, mais as PPP, mais asswaps, estou convencido que alguns destes procedimentos foram ilícitos, no sentido em que o banco sabia que estava a ganhar normalmente, a empresa sabia que estava a ganhar anormalmente ou ilicitamente. Quem assinou, o poder político, autarquias ou instituição geral, sabia que estava a assinar e que não podia fazer e que estava a ganhar alguma coisa de outra maneira. Mas o meu convencimento do que é que vale? Sou uma modesta voz no meio disto tudo.

O problema é averiguar isto, pois implicaria que entidades independentes, com isenção para o fazer e nós temos poucas entidade com isenção, em Portugal, capazes de o fazer. Os procedimentos parlamentares ainda hoje são uma barafunda. Como sabem, as comissões de inquérito normalmente decidem de acordo com a maioria que forma a comissão do inquérito, portanto não podemos esperar grande coisa. Estou convencido que a sucessão de factos que criaram alguma emoção, desde os relacionados com os bancos, com as entidades desportivas, com as PPP e com as swap, tudo isto tem visto a agudizar a atenção da população e das instituições para estas situações.

Portanto, estou relativamente optimista quanto à hipótese de nos próximos anos a Justiça se ocupar daquilo que realmente tem de se ocupar. Mas isto é uma esperança minha. Gostaria, por exemplo, que o Tribunal de Contas tivesse mais poderes, que ele pudesse condenar, que para muitas coisas tivesse capacidade de intervenção antes e não depois. Se o Tribunal de Contas tivesse intervindo antes dosswape dos PPP porque certamente teríamos, a meu ver, menos casos ou menos graves do que tivemos.

Vamos esperar que a opinião pública tenha influência sobre o Estado e sobre os partidos. Porque para tudo isto é preciso o legislador e depois as instituições. Ora as instituições, os partidos políticos e o legislador só receiam uma coisa: a opinião pública. E esta é feita de homens e mulheres livres. A vossa liberdade é que forma a opinião pública e ela que corrige estes comportamentos. Num certo sentido, a segunda pergunta sobre a integridade, individualidades e a justiça, está também - creio eu - respondida no conjunto.

 
Hugo Soares
Obrigado, Professor. Fazíamos grupos de dois e dava a palavra à Beatriz Branco do grupo Castanho e prepara o Renato Gomes do grupo Roxo.
 
Beatriz Branco

Boa tarde, antes de mais, Prof. António Barreto. Fiquei um bocadinho chateada porque ali o meu colega da equipa vermelha falou mais ou menos aquilo que eu ia falar. Ou seja, a minha intervenção, preparei-a assim um bocadinho a seco quando falou que nós éramos muito pobres em recursos naturais e que não tínhamos solo para plantar e que o nosso clima não era assim tão bom. Mas fiz uma pesquisa rápida e os israelitas cultivam no deserto sem água. Nesse país a agricultura representa 2% do PIB e 3,6% das exportações. Eles cultivam abacaxi, laranja, limão, kiwi, goiaba, abacate, banana, manga, tomate, pepino, pimentões e melão.

Portugal destaca-se na produção da pera rocha, do melão, do vinho, do azeite, do kiwi, da laranja, entre muitos outros, alguns em comum com os povos israelitas. Temos um clima de Inverno único na União Europeia: enquanto que metade da Europa está em gelo e neve nós podemos produzir couves e todo o tipo de hortícolas. Cada solo é melhorável, não é? A não ser que seja de pedra. A histórias das parreiras irem ao chão vai melhorando o solo após alguns anos. A cortiça e o pinhão de Portugal são os segundos mais caros do mundo, em primeiro está a China, e vendem-se na mesma, são exportados na mesma.

A maior parte do feijão verde que temos à disposição nos supermercados é marroquino, quando nós temos plenas condições para o produzir. Não nos tornando auto-suficientes, mas diminuindo as suas importações. Exportamos ou consumimos e diminuímos as importações do feijão verde marroquino.

Portanto, peço imensa desculpa em discordar consigo em que Portugal é um país pobre. É pobre em relação a cultura, etc. face aos outros países da Europa, mas temos de cuidar do pouco que temos e torná-lo maior.

Obrigada.

 
Renato Gomes

Boa tarde. Antes de mais gostaria de congratular o Prof. Dr. António Barreto pelo retrato que nos mostrou focando no ponto que mais seria especial, mostrando assim uma boa fotografia de Portugal.

O desafio que eu gostaria de colocar também já foi colocado, mas o meu desafio seria um pouco mais futurista. O Professor disse que já nos deve 12 anos e eu andaria mais 12 para a frente e posto isto gostaria de saber: daqui a 12 anos qual era a fotografia que gostaria de tirar à minha geração? E qual era a fotografia que não gostava de tirar, um momento que não gostava que acontecesse, aquele momento que não gostava de ter a óptica na mão para poder fotografar?

Obrigado.

 
António Barreto

Você discorda de mim, mas concorda. Você diz que discorda que eu tenha dito que somos pobres mas terminou a sua intervenção dizendo que podemos não ser. Portanto, concorda que somos pobres em recursos e que podemos não ser, ou ser menos.

Deixando a brincadeira de lado, o caso israelita é fantástico. Porque primeiro implicou muita ciência e muita técnica que não havia em Portugal e que agora começa a haver. Uma grande parte de agricultores israelitas é doutorada ou licenciada em Química, Física, Biologia, Botânica, produção animal e levam para o trabalho deles tudo o que têm a levar de ciência técnica e de tecnologia.

Por outro lado, o que eles fizeram de principal génio foi trabalhar a água. Eles cultivam no deserto porque eles vão buscar a água. Lembram-se que há bocado eu falei de regadio, regadio e regadio e trabalhar a água. Onde se trabalha com água em Portugal trabalha-se bem. Houve uns anos em que os agricultores desapareceram, estão a reaparecer agora, mas são agricultores diferentes, são mais novos, formados em empresas, com água acessível e que estudam previamente.

O que fez a grande revolução do vinho do Douro por exemplo, nos últimos 25 anos, foi o facto de haver uma universidade que começou a formar enólogos. A Universidade de Trás-Os-Montes e Alto Douro produziu dezenas de enólogos em 20 anos. Você imagina, Portugal era o quarto ou quinto país do mundo a produzir vinho, é o segundo a consumir graças a Deus, e durante 150 anos não fazia enólogos. Quem queria estudar enologia em Portugal tinha de ir para França ou Itália. Só há 20 anos é que começou a haver enólogos e agora já há especialistas, engenharia de produção vinícola, etc.

Resumindo e concluindo, a maneira de combater a pobreza aparente e real de certo tipo de recursos consiste em tomar as precauções necessárias para não insistir no que não deve ser produzido e para procurar os novos produtos. A maior parte do que citou de Israel são arbustos, culturas forçadas em estufa e são árvores. Mais uma vez, porque têm capacidade de resistência, de aguentarem o tipo de clima, o esforço e o stress hidráulico, hídrico e do clima.

Portanto, podemos ser menos pobres ou encontrar fontes de riqueza de emprego e de trabalho com isso. Citou o sobreiro, Portugal tem talvez a maior área de sobreiro do mundo, de montado que está absolutamente estabelecido na academia do mundo inteiro que o montado entre uma associação entre a pastagem e o sobreiro, portanto as duas culturas, o que está na árvores e no chão e na pastagem ter o porco ou um certo tipo de bovinos, isto é uma combinação que faz o melhor possível daquele território e daqueles terrenos.

Você, em Portugal, já não tem montados novos há dezenas de anos porque a pressão é muito grande em produzir qualquer coisa que renda para a semana que vem. Ora, o montado só rende ao fim de 30 anos; quem planta hoje só tem cortiça daqui a 20 ou 30 anos e depois de ter só tem de nove em nove anos ou de dez em dez. Portanto, é um sistema que devia ter sido mais bem aproveitado.

Quando apareceu a doença do sobreiro, ou quando apareceu a doença do pinheiro, por exemplo os famosos ácaros do pinheiro, não havia sequer em Portugal quem estudasse isso.

Há gente a estudar as coisas mais esquisitas no mundo, mas estudar o que nós precisamos não havia. Portanto, é de facto um novo espírito, na Ciência, na técnica, na Economia, na empresa, para poder fazer uma agricultura diferente e não mais a velha agricultura tradicional.

A fotografia daqui a 12 anos, não gosto de ser pessimista demais, mas gostava daqui a 12 anos de fotografar uma geração independente, livre individualmente, e independente colectivamente. Não sei se será possível. Tenho a máquina fotográfica preparada, vamos ver se eu duro estes 12 anos. Mas para mim é o essencial: homens e mulheres livres e uma sociedade independente.

 
Hugo Soares

Esta era daquelas que merecia palmas.

[APLAUSOS]

Eugénia dos Santos do grupo Laranja.

 
Jenny Lopes Santos

Boa tarde. Antes de mais, queria saudar o Prof. António Barreto e agradecer a sua presença nesta Universidade de Verão.

Visto que o senhor Professor tem um grande conhecimento geográfico e demográfico sobre o nosso país e que há pouco mais de 30 anos existe democracia em Portugal e que Portugal hoje assiste a uma litoralização, uma assimetria entre o Interior e o Litoral, que se verificou após o 25 de Abril, não acha que ao longo desses 30 anos o investimento que fizeram no Litoral devia ser feito igualmente para todas as zonas do país? Não acha que ao longo destes 30 anos a democracia devia ser melhor aplicada e não haver essa disparidade da população geograficamente e também se revertia na sua qualidade de vida, por é isso que vemos hoje: as pessoas no Litoral não têm tanta qualidade de vida quanto como se estivessem no Interior.

Se houvesse uma igualdade de distribuição de capitais acho que todos nós portugueses tínhamos uma melhor qualidade de vida.

 
António Barreto
Desculpe lá, mas há uma coisa que você disse e que eu não percebi. Você diz que há menos qualidade de vida no Litoral? Foi o que disse?
 
Jenny Lopes Santos
No Interior temos mais qualidade de vida. Qualidade de vida no sentido de termos melhor saúde, não no sentido de ter meios de acesso, porque isso é no Litoral obviamente.
 
Hugo Soares
Filipa Rafael, grupo Azul.
 
Filipa Rafael

Olá, boa tarde, Prof. António Barreto. Obrigada pela partilha dos seus saberes.

Estamos aqui a retratar Portugal e eu não consigo retratá-lo sem abordar um tema estruturante que é a área da Educação.

Temos um sistema de ensino que se diz gratuito e igualitário, mas assistimos ao encerramento de turmas na escola pública e continuamos a subsidiar algumas escolas privadas. Temos políticas de combate ao absentismo e ao abandono escolar, aumentamos a escolaridade obrigatória para os 18 anos, mas cada vez menos os cursos profissionais são aprovados pela tutela.

No Ensino Superior, por exemplo ao nível dos estudos de doutoramento pagamos propinas na ordem dos 2450 euros quando países quase ao nosso lado e pertencentes à União Europeia pagam propinas na ordem dos 450 euros. Sendo a Educação uma questão fracturante da sociedade actual e das sociedades futuras, sem Educação acho que não há geração, pergunto-lhe, na sua opinião, como é que naquilo que diz respeito à Educação, chegámos a este panorama?

Muito obrigada.

 
António Barreto

Isto está a começar a ficar difícil. Já vi que está a haver uma polémica qualquer. É bom, estão a discutir onde é que se vive melhor, se é no Interior ou se é no Litoral. Em 1960, vários professores, nomeadamente um chamado Sedas Nunes, discutiam e reflectiam muito sobre o dualismo da sociedade portuguesa. Há um livro muito importante publicado na altura, que se chama "Portugal, a Sociedade Dualista em Evolução”. As ideias centrais dessa altura era de quem em Portugal havia duas grandes realidades, o Litoral e o Interior, e que o Litoral tinha tudo, a modernidade, a cultura, a ciência, o convívio, o conforto, o bem-estar, a educação, etc., e que no Interior havia cada vez menos e que as pessoas tinham cada vez mais doenças, menos bem-estar, menos conforto, menos direitos, etc.

Esta ideia, esta teoria e visão das coisas, teve um grande sucesso, foi um êxito em Portugal e também lá fora a ideia de que há dualidades nas sociedades era de outros países e de outras situações. A minha ideia hoje é que esta dualidade desapareceu e que do ponto de vista do estatuto das pessoas e dos direitos a que as pessoas são titulares, a situação do Interior e do Litoral é muito parecida. Com a universalização dos sistemas sociais, as pessoas têm o direito à educação e vão seguir a educação. Depois, há algumas desigualdades económicas nalguns casos, mas quero dizer-lhe que estou convencido que há mais desigualdade económica entre as classes altas e as classes baixas da área metropolitana de Lisboa, ou de Setúbal do que por exemplo entre Lisboa e Castelo de Vide.

Aquilo que há 30 ou 40 anos era verdade, que havia um abismo que separava o Litoral do Interior, o que aconteceu com a aproximação de Portugal, com a diminuição das diferenças, com a fuga de 40% da população que trabalhava na Agricultura para os Serviços e para a Indústria, com a alfabetização da população toda, com a criação dos sistemas hospitalares, sistemas de saúde e de educação, com tudo isto criaram-se as novas desigualdades. A meu ver, mais cavadas, que são entre ricos e pobres, trabalhadores e desempregados, classe média e alta e classe baixa nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

Isto é a minha convicção. A discussão é uma discussão difícil e muito dura e muito longa, por isso percebi que havia rapidamente diferenças entre vocês.

Você disse uma coisa terrível que foi dizer que se vive melhor, que há mais qualidade de vida, no Interior do que no Litoral. Isso é a coisa mais polémica que eu ouvi hoje e não sei quem é que tem razão. Há muita gente que vivia em Lisboa e que nos últimos dez anos vem viver para o Interior porque diz que tem mais qualidade de vida em Montemor, em Castelo Branco ou no Peso da Régua, ou em Tábua ou Mortágua, que há mais sossego, mais tranquilidade, mais serenidade, não se tem carros, barulho, que os filhos podem andar no meio da natureza, que têm mais descanso e menos stress.

Há muitas pessoas que dizem isto e dizem-no convictamente e que o fazem, deixam de viver na cidade para ir viver para o Interior.

Depois também há as pessoas que dizem que vivem no Interior e não têm acesso à saúde, tenho de fazer 60 km para ir a um hospital, ou 40 km para ir ver um filme ao cinema. Isto é um ponto de vista muito polémico, muito controverso e estou convencido que onde há mais qualidade de vida, hoje actualmente, em Portugal, é nas cidades de médias dimensão. Por exemplo sítios como Viseu, Vila Real, Braga, Évora, talvez Portalegre, e certas partes de Lisboa e do Porto, mas só certas partes. Em Lisboa e no Porto é muito fácil uma pessoa passar 3 horas e meia a 4 horas por dia em meios de circulação próprios ou públicos.

Considero que isto não é qualidade de vida. Mas é verdade que viver em Lisboa e no Porto traz consigo um conjunto de vantagens que as próprias pessoas dizem, desde o emprego, à saúde, à segurança, etc. Portanto, estamos em pleno universo de controvérsia. Creio que você tem razão quando diz que há mais qualidade de vida no Interior, "em certos aspectos”, acrescento eu e o seu colega tem razão em dizer que há mais qualidade de vida no Litoral e eu acrescento em "certos aspectos”.

Temos de caracterizar exactamente aquilo que estamos a falar. Como disse há tempos e o vosso colega mencionou, é verdade que há mais condições de liberdade nas cidades do que no campo. Quem vive sozinho não tem liberdade; pode ter tranquilidade, serenidade.

A Educação é a coisa mais terrível do mundo. Não vão ter tempo para discutirmos educação agora. Perguntou-me como é que chegámos aqui. Chegou-se aqui com muitas ilusões, muitos erros, muita demagogia. Foi um erro considerar que não havia lugar para o ensino profissional por exemplo, foi um erro considerar que o Ensino Superior, a universidade, é um direito. A universidade não é um direito, ela tem de se merecer, tem de se ter acesso à universidade com muito trabalho e boas notas. Não é um direito. Criaram-se centenas de milhares de licenciados de maus cursos, de cursos demagógicos, de disciplinas inexistentes, por demagogia.

Criou-se um sistema educativo absolutamente monstruoso, deve ser certamente o sistema educativo mais centralizado da Europa ou do mundo. O mais unificado, mais integrado. Não é possível gerir e administrar um sistema educativo como o nosso em que não há autonomia das escolas, em que os pais são afastados das escolas, os autarcas são afastados das escolas, em que a maior parte da legislação sobre a Educação dos últimos 20 anos considera que a comunidade educativa são professores e alunos, não há pais, autarcas, vizinhos, empresas, não há instituições.

Isto são erros sucessivos cometidos e é muito difícil voltar atrás, mas tem de se voltar atrás. Não é possível continuar a administrar o sistema educativo como se fosse uma escola. O que digo para uma escola de 1500 alunos não vale para uma escola de 50 ou de 100 ou de 300. O que digo para uma escola urbana não vale para uma escola rural. O que digo para uma escola com secundário não vale para uma sem o secundário. O que digo para a dimensão de uma turma na escola "A” não dá para a dimensão de uma turma na escola "B”

Racionalizar, ou homogeneizar, ou integrar este sistema educativo não é possível. Portanto, a meu ver, o pior que nos está a acontecer há vários anos, não é só agora, é que estamos a remendar o remendo, estamos a pôr pensos rápidos numa perna de pau, estamos a pôr gesso numa perna de ferro. Estamos a remendar o que já está remendado que já está remendado e que já está remendado! Não é possível.

Podia, se quiserem, ir um por um: porque é que o ensino profissional foi assim, porque é que as universidades..., etc., mas o essencial para mim está nisto, na necessidade de desintegrar, desunificar e descentralizar o sistema educativo; sem isso não há outra solução.

 
Carlos Coelho

Muito bem, chegamos ao fim de um retrato de Portugal. Sabem que depois de preencherem os vossos impressos e entregá-los à saída, têm lá em cima um lanche. Os trabalhos de grupo começam às 17h30.

Em nome de todos, um especial agradecimento ao Prof. Dr. António Barreto. Muito obrigado.

[APLAUSOS]

FIM