ACTAS  
 
27/08/2013
Briefing sobre a Constituição da República Portuguesa
 
Carlos Coelho

Vamos dar início ao nosso briefing sobre a revisão constitucional. Queria agradecer muito ao Prof. Doutor Tiago Duarte pela sua colaboração e pelo favor que nos faz em estar connosco. Todos vocês receberam o currículo dele, é um dos jovens professores e dos professores mais conceituados da nova geração. Tem como hobbies coleccionar objectos de desporto antigos, a sua comida preferida é ameijoas à bulhão pato, o animal preferido são "Os Bichos” do Miguel Torga, o livro de ficção que nos sugere é "O Amor em Tempos de Cólera”, de não ficção "A Forma da República – Uma introdução ao estudo do direito constitucional” e de poesia "A Casa e o Cheiro dos Livros”. O filme que nos sugere é "Cinema Paraíso”, um clássico, e a qualidade que mais aprecia é a bondade.

Agradeço-lhe muito o favor que nos faz em colaborar connosco e o que se pretende é, como vos disse de manhã, ouvirmos um dos maiores especialistas portugueses em direito constitucional com informações básicas que permitirão a todos os grupos trabalhar na Constituição. O que vos pedimos é que identifiquem no texto da lei fundamental o que consideram valores fundamentais que devem perdurar, aquilo que consideram que já devia ter caducado e que devia ser revogado e, finalmente, aquilo que consideram que devia ser alterado.

Para estarem em condições de fazer essa leitura crítica da Constituição, têm de perceber o que é uma Constituição, por que razão existe, qual é a sua estrutura, como é aprovada e alterada. É sobre isto que o nosso convidado vem falar hoje.

[APLAUSOS]

 
Tiago Duarte

Muito obrigado a todos. Queria agradecer o convite que me foi dirigido pela organização, é com muito gosto que aqui estou. Já tinha ouvido falar da UV há alguns anos, tinha muita curiosidade em ver como era e portanto, agradeço muito esta oportunidade.

Apesar de isto se chamar briefing , não se antecipa que haja membros do Governo a demitirem-se, estejam portanto tranquilos relativamente a isso.

[RISOS]

A terceira nota era para vos questionar se alguém conhece uma doença chamada Síndrome de Estocolmo ? É uma doença muito bizarra que faz com que os reféns de sequestros se afeiçoem pelos sequestradores e que criem alguma simpatia e carinho pelos sequestradores. Eu tenho de vos confessar que padeço um pouco de Síndrome de Estocolmo em relação à Constituição, é um homem doente que está aqui à vossa frente para vos falar da Constituição.

Não chegarei ao ponto do caso de uma refém que acabou por se casar com o seu sequestrador algum tempo depois porque felizmente em Portugal ainda não é possível uma pessoa casar-se com um objecto, graças a deus!

[RISOS]

Queria contextualizar que de tanto estudar a Constituição acabei por me afeiçoar a ela. O Síndrome de Estocolmo, que surgiu num sequestro que houve precisamente em Estocolmo num banco, tem na sua base não propriamente gostar-se muito dos sequestradores, mas o admitir-se que a solução possa ser pior que a situação. Por vezes, quando se está a tentar soltar os sequestrados alguns dos reféns acabam por morrer. O meu Síndrome de Estocolmo relativamente à Constituição não é que a ache perfeita, mas é o temor de que uma mudança pudesse mudar a Constituição que temos. A verdade é que a Constituição que temos tem sobrevivido a tudo e mais alguma coisa: já tivemos Governos maioritários, minoritários, de um só partido, de coligação, Governos que chegaram ao final do mandato, Governos que não chegaram ao final do mandato, moções de censura aprovadas, moções de confiança, Governos de iniciativa presidencial, alturas de maior crise e alturas de menor crise e a Constituição tem sabido acumular todas essas situações.

Neste momentos não temos uma coisa a que podemos chamar "questão constitucional”, que crie um conflito entre a sociedade e a sua própria Constituição. Tivemos isso até 1982, onde estava previsto um órgão que era o Conselho da Revolução composto por militares que não tinham legitimidade democrática e que tinham um conjunto de poderes relevantes no sistema político. Aí tínhamos um desfasamento grande porque em 1982 já a sociedade estava completamente pacificada e ainda mantínhamos um órgão desses. Por isso na revisão constitucional de 1982 eliminou-se esse órgão.

Depois em 1989 houve uma nova revisão constitucional que voltou também a ligar a sociedade e os tempos com a Constituição porque até 1989 tinha uma norma que proibia as privatizações das empresas que tinham sido nacionalizadas no 25 de Abril. E em 1989, em plena integração europeia, não fazia sentido que houvessem empresas que tinham sido privadas, depois nacionalizadas e mesmo que o Estado quisesse não podiam voltar a ser reprivatizadas. Essa revisão constitucional de 1989 foi muito relevante para eliminar esse obstáculo e abrir o período de modernização da economia portuguesa.

Depois, em 1992 ainda houve uma revisão constitucional que permitiu que Portugal se adaptasse para entrar na moeda única. Houve estas três revisões constitucionais que foram adaptações aos tempos que se viviam, mas desde então que não há uma questão constitucional, um conflito entre a comunidade que somos todos nós e a Constituição que temos.

Claro que há muitas coisas que se podiam limpar, mudar e alterar, mas verdadeiramente é preciso percebermos que o essencial de uma Constituição foca-se em dois grandes tópicos.

Logo na Revolução Francesa, um dos primeiros documentos aprovados foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, tinha só dezassete artigos com aquilo que se considerava os direitos mais importantes do Homem e do Cidadão, como se dizia na altura. O artigo dezasseis dizia que qualquer sociedade onde a separação de poderes não esteja assegurada e onde os direitos fundamentais não estivessem garantidos, essa sociedade não tem Constituição. Até pode ter um livro a que chame Constituição, até pode ter uma lei a que chame Constituição, mas um país onde a separação de poderes não esteja assegurada e os direitos fundamentais não estejam garantidos, não tem Constituição porque a Constituição é isso — se a reduzirmos à sua essência.

A Constituição serve para assegurar a separação de poderes, para assegurar e garantir os direitos fundamentais perante os órgãos constituídos e por isso as constituições são sempre Leis contra-maioritárias, que servem sempre como limite à vontade e o querer das maiorias. As maiorias, legitimadas democraticamente a cada quatro anos, podem legislar e têm a sua liberdade de exercer as opções políticas que queiram, mais liberais, mais conservadoras, mais de direita, mais de esquerda, mais progressistas, consoante o catálogo que quisermos estabelecer, mas essas maiorias não podem querer tudo, não podem pôr em causa a separação de poderes, não podem pôr em causa os direitos fundamentais porque a Constituição está acima das maiorias parlamentares, dos presidentes e Governos de cada momento. E porque a Constituição é fixa.

É muito interessante como em 1787 se teve esta percepção de que direitos fundamentais e separação de poderes eram os grandes tópicos de qualquer Constituição. Se olharmos para a nossa Constituição veremos que os dois grandes capítulos têm que ver com isto mesmo, com separação de poderes e direitos fundamentais. Eu talvez gastasse dois ou três minutos à volta destes dois grandes tópicos que são a essência da nossa Constituição e de qualquer Constituição.

Se pegarmos na separação de poderes, olhamos para a nossa Constituição e vemos que tem os vários órgão de soberania lá representados: Parlamento, Governo, presidente. Vamo-nos concentrar apenas nestes três porque falarei dos tribunais um pouco mais à frente. Se olharmos para o modo como estes três órgãos de soberania se relacionam percebemos que não é igual em Portugal, no Reino Unido ou em Espanha ou na Alemanha, Em todos eles está garantida a separação de poderes porque isso é o essencial, todos estes países têm uma Constituição vigente e aplicável, mas o modo como os órgãos de soberania estão organizados diz muito sobre o sistema de Governo de cada país. Às vezes ouvimos falar de parlamentarismo, presidencialismo, semipresidencialismo e às vezes ouvimos falar que o presidente está a ser muito interveniente, parece que estamos a caminhar no sentido do presidencialismo, outras vezes ouvimos dizer que nos casos onde não há uma maioria absoluta no Parlamento é que verdadeiramente estamos num parlamentarismo. O sistema de Governo presidencial ou semipresidencial não muda às segundas, quartas e sextas, consoante o presidente mande uma lei para o Tribunal Constitucional ou o Parlamento aprove uma moção de censura.

O sistema de Governo é aquele que está fixado na nossa Constituição, o sistema de Governo português é aquele que resulta do modo de como os órgãos de soberania se relacionam no âmbito da separação de poderes na nossa Constituição. Há dois eixos muito precisos que qualificam os sistemas de Governos nos diversos países. Há duas perguntas no fundo que podemos fazer à Constituição e quando recebemos a resposta nos permite dizer que sistema de Governo é que nós temos:

Primeira pergunta é se o Chefe de Estado é eleito directamente pela população e se por isso mesmo tem um papel determinante no sistema de Governo, sim ou não? No caso, por exemplo, das monarquias, não tem, não é um Chefe de Estado eleito e portanto não tem poderes muito relevantes. Nos casos da Alemanha ou de Itália, que são repúblicas, mas em que o Chefe de Estado não é eleito directamente pela população, mas pelo Parlamento, não tem poderes muito relevantes. Ora, em Portugal o Chefe de Estado é eleito directamente pela população e por isso tem um poder muito relevante no nosso ordenamento jurídico. Esta é a primeira pergunta que fizemos: qual é o papel do Chefe de Estado? É eleito directamente pela população, tem um papel relevante no nosso ordenamento jurídico. Esta é uma característica que o nosso sistema herdou dos sistemas presidenciais, como por exemplo, os Estados Unidos da América ou o Brasil em que o Chefe de Estado é eleito e por isso tem um papel relevante no sistema político. Portanto, começamos por ver que em Portugal, um dos elementos essenciais, que é o Chefe de Estado, herdámos características do presidencialismo e não do parlamentarismo porque na Alemanha, Espanha, Itália, o Chefe de Estado não é eleito e não tem um papel muito relevante.

Qual é a segunda pergunta que podemos fazer à Constituição e cuja resposta nos ajuda a perceber qual é o sistema de Governo: o Governo do país responde politicamente perante o Parlamento ou não responde politicamente perante o Parlamento? O Governo do país é nomeado tendo em conta os resultados das eleições parlamentares – ganhou o PSD e o Governo é PSD, ganhou o PS o Governo é PS, ou não há ligação entre o Governo e o Parlamento? Pode o Parlamento fazer cessar as funções do Governo aprovando uma moção de censura ou rejeitando uma moção de confiança ou não?

Em Portugal, o Governo depende da confiança política do Parlamento, o Governo sai dos resultados eleitorais da Assembleia da República e por isso mesmo é que a Assembleia da República pode fazer cessar as funções de Governos através da rejeição de uma moção de confiança e da aprovação de uma moção de censura. Esta característica que existe no sistema português, não temos nos sistemas presidenciais. Nos Estados Unidos da América, podemos ter um Governo republicado e um Parlamento democrata porque as eleições legislativas são só para os deputados e quando se elege o presidente, o presidente escolhe o seu próprio Governo. Por isso Portugal, quanto a esta característica, vai herdá-la dos sistemas parlamentares, como a Espanha, a Alemanha, a Itália. Lá, os governos respondem perante os Parlamentos e os Parlamentos podem fazer cessar os Governos através da aprovação de moções de censura ou rejeições de moções de confiança. Se repararem, Portugal tem um sistema semipresidencial porque vai buscar umas características ao sistema presidencial, pondo o Chefe de Estado com o papel relevante no sistema e eleito directamente pela população, e vai buscar também características ao sistema parlamentar pondo o Governo dependente perante o Parlamento e permitindo ao Parlamento cessar as funções do Governo.

O sistema semipresidencial é isto, é esta junção entre as características do presidencialismo e as características do parlamentarismo. Elas moldam o nosso sistema e fazem com que seja um sistema que assegura a separação de poderes. O cerne de poder divide-se entre o Parlamento, que pode fazer cessar as funções de Governo, o próprio Governo que tem poder legislativo – na generalidade dos países os Governos não têm poder legislativo – e o Presidente da República que, sendo eleito directamente pela população, tem um papel preponderante no nosso processo legislativo. No veto das leis, no envio de diplomas para o tribunal constitucional ou também na própria capacidade de nomear Governos porque quem nomeia Governos é o Presidente da República tendo em conta os resultados eleitorais.

Mas os resultados eleitorais não são inequívocos. Em Portugal, apesar de já termos tido vários Governos e várias eleições legislativas, nunca aconteceu uma situação (que se acontecer vai testar o nosso sistema), que é o caso do partido mais votado ganhar as eleições, mas sem maioria absoluta e o segundo e terceiro partido mais votado juntos terem maioria absoluta. O primeiro partido ganha as eleições e fica na expectativa de governar sem maioria absoluta e o segundo e terceiros partidos mais votados juntos terem maioria absoluta e dizerem que têm mais capacidade para governar porque asseguram maior estabilidade. Aí, isso colocaria em teste o nosso sistema para saber se o Presidente da República nomearia o Governo que resultava do partido que ganhou as eleições, como aconteceu até hoje em que o Governo Governou sozinho ou acompanhado, e aí teríamos a tentação de nomear Governo o partido mais votado mesmo sem maioria absoluta ou nomear Governo os dois partidos que juntos têm maioria absoluta. Isso ainda não aconteceu e ainda há muitos testes que a nossa Constituição poderá enfrentar.

Também ainda não aconteceu uma situação em que haja uma relação entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República em que, por exemplo, o PM tenha sido um anterior ministro do actual Presidente da República, e pudesse haver uma relação de quase superioridade do Presidente face ao PM. Isso nunca aconteceu entre nós e por isso nunca houve esse teste para saber se numa situação dessas o Presidente teria a tentação de querer governar através do PM, como acontece em França. Até hoje a separação de poderes tem funcionado bem em Portugal, apesar das críticas que podem acontecer, de pequenos faits divers , olhando genericamente para a função constitucional de separar os poderes, Portugal é um caso de sucesso, de funcionamento do sistema de várias variáveis que aconteceram.

Sem me querer alongar muito, passava para o segundo grande tema da Constituição: assegurar os direitos fundamentais. Este é um tema que hoje está muito presente e é importante perceber a relevância dos direitos fundamentais numa Constituição. Há um autor que tem um livro que se chama "Os direitos fundamentais como trunfos contra a maioria”. Os direitos fundamentais servem precisamente para serem usados pela população contra a actuação da maioria sempre que a maioria, através da sua actuação, põe em causa esses direitos fundamentais. Eles estão na Constituição precisamente para se superiorizarem às leis, aos actos do Governo e da administração e para serem um garante do funcionamento do sistema que não pode ultrapassar esses direitos fundamentais.

Mas também é preciso perceber que esses direitos fundamentais não vivem foram do mundo, a própria Constituição não vive fora do mundo e portanto os direitos fundamentais são talvez o capítulo mais difícil de interpretar da Constituição, é aquele que lendo parece muito simples, porque se percebe que direitos são aqueles, mas têm de ser interpretados no contexto.

Os direitos fundamentais têm de se relacionar primeiro uns com os outros e depois com o resto da Constituição. Ninguém poderá invocar o direito fundamental do trabalho para dizer que tem direito a exercer a sua profissão de ladrão. É evidente que ser ladrão não é uma profissão e não é protegida pelo direito ao trabalho que está constitucionalmente garantido. Ninguém pode querer exercer o seu trabalho de criação artística pintando a parede do seu vizinho porque o seu vizinho também tem o direito à propriedade das paredes da sua casa e de as paredes não serem pintadas. Os direitos têm de se articular e harmonizar uns com os outros e às vezes podem ser restringidos pela lei.

O caso da limitação dos mandatos dos autarcas é um caso claro de uma lei que vem restringir um direito com autorização constitucional, a própria Constituição prevê que para salvaguardar outros direitos ou para salvaguardar alguns interesses possam os direitos fundamentais serem restringidos desde que o sejam de forma proporcional.

Ao chegar à palavra proporcional, entro na parte mais difusa e cinzenta da Constituição, que é aquela que muitas vezes causa mais perplexidade quando lemos sentenças do Tribunal Constitucional. A nossa Constituição é muito imbuída de princípios, o que não pode deixar de ser porque os princípios são mais gerais do que as próprias regras e portanto têm a possibilidade de se aplicarem a situações que não se imaginava que ocorressem no futuro. Portanto, a nossa Constituição consagra o princípio da segurança jurídica, da confiança, da igualdade, da proporcionalidade e tem sido com base nestes princípios que algumas das decisões mais polémicas que o Tribunal Constitucional tem tomado nos últimos tempos têm sido fundamentadas.

Por isso, às vezes, há um pouco o equivoco de se achar que se mudássemos esta Constituição que muitos dos problemas e decisões que têm sido tomadas pelo Tribunal Constitucional não aconteceriam.

O raciocínio é: se o Tribunal Constitucional tem considerado inconstitucionais algumas leis com base na Constituição e se nós achamos essas leis muito relevantes então devíamos mudar a Constituição e resolvíamos o problema. Mas se nós olharmos para as decisões vemos que o Tribunal tem fundamentado essas decisões não em regras especificas da Constituição que se retiradas deixariam de ser usadas pelo Tribunal Constitucional.

O Tribunal Constitucional tem fundamentado as suas decisões, bem ou mal – não estou aqui para fazer uma análise das decisões do Tribunal Constitucional nos últimos tempos – nestes princípios: princípio da confiança, porque é evidente que uma Constituição tem de fundamentar a confiança junto dos cidadãos do seu próprio estado; o princípio da igualdade porque é evidente que qualquer Constituição deve garantir uma igualdade entre os vários cidadãos; o princípio da proporcionalidade, é evidente que qualquer Constituição deve definir regras para que não sejam afectados os direitos e expectativas dos cidadãos mais do que o necessário para se salvaguardar outros direitos e outros interesses constitucionalmente protegidos.

Portanto, não é com uma revisão constitucional que se ultrapassam estes princípios. Qualquer Constituição, com qualquer revisão constitucional manterá sempre estes princípios. A questão é uma questão de harmonização, os tempos de hoje são de olhar para a Constituição e perceber que ela própria tem de acompanhar o tempo.

Perguntavam à bocado os vossos colegas aqui ao almoço o que é que eu achava do preâmbulo. O preambulo da Constituição é um exemplo claro de um elemento histórico que mostra onde começámos e de onde a nossa Constituição surgiu. Que tipo de linguagem, de conversa, de ideias tinham os deputados "constituintes” quando criaram a Constituição em 1974.

O preâmbulo ficou lá atrás e por isso ficou completamente desajustado aos dias de hoje, mas também não serve para mais nada que não seja para nos lembrar de onde viemos. Mas a Constituição não pode ficar lá atrás, tem de acompanhar os tempos e tem de ser lida no contexto dos tempos que correm.

Naturalmente que tem de ser sempre lida como sendo aquilo que é a sua essência que é limitar a actuação da maioria, essa é a essência da Constituição. Dizer " por aqui não se pode ir, mas se calhar pode-se ir por ali ” ou " por aqui pode-se ir, mas só até ali ”. Algumas portas é justo que sejam fechadas porque senão a Constituição era um passador, tudo passava pela Constituição. Isso não faz sentido, mas se algumas portas se fecham, outras têm de se manter entreabertas.

Uma Constituição que fecha as portas ao progresso e ao futuro, não é uma Constituição aceitável. Eu acho que na nossa Constituição, lida com cuidado e com atenção, percebe-se quais são as portas que se fecham e as portas que se deixam entreabertas. Quando se diz que o sistema nacional de saúde deve ser universal, é uma porta que se fecha porque é impossível não ter um sistema nacional de saúde que seja universal, mas depois diz que o sistema nacional de saúde deve ser tendencialmente gratuito e ainda se acrescenta " tendo em conta a capacidade económica dos cidadãos ”, o que permite a diferenciação pela capacidade económica dos cidadãos e é uma porta que se entreabre. Quando se diz que deve haver um serviço público de televisão é uma porta que se fecha, temos de ter um serviço público de televisão, não se pode cumprir apenas no serviço privado das empresas que exploram o mercado de televisão, mas quando se diz que é um serviço público e não diz que é um canal de propriedade do Estado, é uma porta que se entreabre porque é possível fazer serviço público sem ser através de órgãos e serviço do Estado. As autoestradas são exploradas por empresas privadas, mas são serviço público. A Constituição deve ser sempre lida neste duplo sentido da porta que se fecha e de uma que se entreabre e esta leitura é muito importante que seja feita pelos tribunais.

Tinha-vos dito que fechava com os tribunais quando falei dos vários órgãos de soberania e queria terminar apenas com a palavra dos tribunais para vos explicar por que razão às vezes as pessoas ficam um bocadinho perplexas com estas decisões contraditórias dos tribunais e com a função do Tribunal Constitucional. Para que a Constituição seja efectiva e cumpra os dois desígnios que já vinham da Revolução Francesa da separação de poderes e direitos fundamentais, é preciso que essa Constituição seja garantida e respeitada porque uma Constituição que não é respeitada não se dá ao respeito, não é cumprida. E para que isso ocorra, é preciso e é fundamental a intervenção dos tribunais para que verifiquem se a Constituição está ou não a ser cumprida. Em Portugal é muito curioso que, ao contrário do que acontece nos outros países, não é só o Tribunal Constitucional porque todos os tribunais, de Faro a Braga passando pelas ilhas, tribunais de trabalho, os de família e os criminais, são de alguma maneira tribunais constitucionais porque está na Constituição que todos os tribunais, quando estão a aplicar as leis aos casos concretos, não devem aplicar leis se acharem que são inconstitucionais.

Se um tribunal se deparar com uma lei que considera inconstitucional, não a deve aplicar porque deve preferir a Constituição à lei, claro que depois desta decisão cabe recurso para o Tribunal Constitucional que dirá definitivamente se a lei é inconstitucional ou não é. A fiscalização começa logo nos tribunais, no dia-a-dia, a fazerem essa leitura. É muito importante esta teia de todos os tribunais serem zeladores da Constituição.

Mas a garantia da Constituição não se faz fiscalizando o cumprimento desta Constituição, também é preciso perceber se ainda há ligação desta Constituição com o sentir geral da comunidade, a tal questão constitucional. Uma Constituição que não é querida, que não é respeitada, que é apenas tolerada, aguentada, não é uma Constituição que exerce as suas funções. É por isso que a nossa Constituição prevê que a cada cinco anos ou antes disso, se o consenso dos deputados for mais amplo, mas pelo menos a cada cinco anos há a possibilidade de rever essa Constituição por vontade dos deputado desde que reúna dois terços.

Rever a Constituição, ao contrário daquilo que se pensa, é também uma maneira de garantir a vigência da Constituição. Uma Constituição que se cristaliza e que não se consegue mexer às vezes descola-se do mundo e já não serve. Depois a tentação é deitá-la fora toda por inteiro. Portanto, rever a Constituição é também uma maneira de a garantir, de a manter viva, de afinar o que há para afinar desde que se mantenham os pilares estruturantes que, voltando à questão, são sempre a separação de poderes e garantia dos direitos fundamentais. Esses são os pilares estruturantes que nenhuma Constituição ou revisão constitucional pode pôr em causa porque, ao fazê-lo, estaria a pôr em causa a própria democracia. Desde logo o direito à liberdade de imprensa, liberdade de expressão, de partidos políticos e não há democracia sem separação de poderes porque sem a separação de poderes é o próprio conceito de democracia que está a ser posto em causa.

Isto foi uma análise muito sucinta e muito resumida da Constituição que vos quis transmitir, espero que não se percam no vosso trabalho e na vossa análise nos pormenores, nas pequenas curvas, nas pequenas vírgulas, nas palavras bizarras que vão encontrar. Olhem para a Constituição nesta perspectiva aberta do essencial. O que é essencial numa Constituição? Será que a nossa Constituição transmite os valores essenciais da nossa sociedade ou será que já não transmite os valores essenciais da nossa sociedade? Será que todos ainda nos revemos nestes valores constitucionais? Será que falta algum valor que ainda não esteja cá consagrado ou os valores que cá estão, devidamente interpretados, devidamente analisados, devidamente harmonizados respondem às exigências cada vez maiores do nosso país.

Eu acho que a nossa Constituição, tudo somado, é um caso de sucesso, mas isso pode ser, mais uma vez, um sintoma da minha doença de Síndrome de Estocolmo. Vocês, nos próximos dias, me dirão se esta Constituição é para os dias de hoje ou não é para os dias de hoje.

Se me permitem mais um segundo, e como estou em Castelo de Vide e como nunca tinha vindo a Castelo de Vide, eu gostava de terminar com uma pequena citação de um poeta da terra chamado Cristovam Pavia que tem um poema que não foi escrito a pensar na Constituição, mas que bem podia e que espero que vos fique a tocar as vossas cabeças durante estes dias. Diz o seguinte:

" Agora sei que vives mais

Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio...

Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo

Já me confundo contigo ”.

Não espero que se confundam comigo e muito menos com a Constituição, mas pelo menos que tenham uma ligação mais próxima com esse texto que nos parece tão distante e que no entanto muda tanto a nossa vida como é a Constituição. Muito obrigada a todos.

[APLAUSOS]

 
Carlos Coelho
Os vossos colegas já tiveram ocasião de durante todo o almoço trocar opiniões com o Professor Tiago Duarte, mas se houver alguém que queira mesmo fazer uma pergunta breve, nós podemos recolher duas ou três perguntas só. Alguém quer fazer alguma pergunta? Faça favor
 
Ana Sofia Silva
Muito boa tarde, muito obrigado por ter vindo, o meu nome é Ana Sofia Silva. Eu queria perguntar-lhe se acha que há algo que não tem de todo dignidade constitucional para estar na Constituição.
 
Carlos Coelho

Portanto, querem que o Dr. Tiago Duarte faça o vosso trabalho, já percebi.

[RISOS]

Aluno não identificado

Antes de mais, queria congratular a sua presença aqui. A minha pergunta é em relação aos poderes que o Presidente da República tem na dissolução da Assembleia da República e em convocação de eleições antecipadas. Como podemos ver, a nossa vizinha Espanha nos últimos trinta ou trinta e cinco anos teve seis primeiros ministros e Portugal teve quinze ou dezassete, e podemos ter exemplo do que aconteceu à sete ou oito anos quando o presidente Jorge Sampaio dissolveu a Assembleia da República o que deu origem à queda do Governo do Dr. Pedro Santana Lopes. Era um Governo de maioria absoluta. Em quase todos os países em que o semipresidencialismo é o regime vigente um Governo de maioria parlamentar não se dissolve assim tão facilmente como um Governo se dissolveu naquela altura. Eu queria perguntar se acha que os poderes do Presidente da República, nesse campo, deviam ser limitados ou deviam ser mais fiscalizados pelo próprio Parlamento ou Tribunal Constitucional.

 
Tiago Duarte

Muito obrigado pelas perguntas. Em relação às matérias que não deviam estar na Constituição são mais questões de pormenor do que grandes temas. Quando passar os olhos pela Constituição verá organizações de moradores, temas que na altura tinham alguma relevância como a questão de Portugal apoiar o desarmamento global e o fim dos blocos militares, são muito datadas. Enfim, se o objectivo fosse fazer uma limpeza terminológica de alguns artigos há muita coisa que se pode eliminar, mas também não acho que tenham sido essas normas que alguma vez tenham criado problemas à nossa Constituição. Pode-se aproveitar uma revisão constitucional para fazer esse depuramento de palavras e artigos, mas isso não deve ser a essência de uma revisão constitucional. Uma revisão constitucional deve ser para um desígnio, "O que é que nós queremos” como tivemos em 1989, queremos abrir o país à iniciativa privada, queremos abrir o país às privatizações, queremos uma economia moderna. A Constituição não permitia? Então fizemos uma revisão constitucional, com o consenso generalizado na sociedade portuguesa de que isso era preciso. Portanto, acho que se pode aproveitar a revisão constitucional para fazer essas limpezas, mas isso não pode ser o motivo da revisão constitucional.

Quanto à questão que o seu colega colocou dos poderes do Presidente da República. Há uma questão que é muito relevante e que é preciso ter bem clara no nosso sistema de Governo semipresidencial relativamente ao segundo eixo de que falei: o Governo é politicamente responsável perante o Parlamento e só perante o Parlamento. Até 1982 o Governo era politicamente responsável perante o Parlamento e perante o Presidente, o que era uma situação de total esquizofrenia porque como o Parlamento é eleito em eleições legislativas e o Presidente é eleito nas eleições presidenciais, que não coincidem, pode acontecer que o Parlamento ser maioritariamente progressista, para não usar a terminologia de direita e esquerda, e Presidente conservador. Então se o Governo é responsável perante os dois, o que é que vai fazer? Políticas progressista para não ter uma moção de censura no Parlamento, ou políticas conservadoras para não ser demitido pelo Presidente?

Ninguém pode servir a dois amos, como se costuma dizer. Essa situação não funcionaria e em 1982 eliminou-se a responsabilidade política perante o presidente e este não tem o poder de demitir um Governo apenas por discordâncias políticas com a linha de ação que um Governo está a seguir.

Quem tem competência para dissolver um Governo por discordâncias políticas é a maioria parlamentar e hoje é muito claro e é tão claro que desde 1982 nenhum Presidente demitiu um Governo. O único caso em que um Presidente pode demitir um Governo é se estiver em causa a célebre frase " o regular funcionamento das instituições democráticas ”, o que evidentemente nunca esteve em causa. Isso aconteceria se o Governo dissesse que não ia cumprir uma decisão do Tribunal Constitucional, o que nunca esteve obviamente em cima da mesa. E o Presidente não tem de concordar politicamente ou concordar com a acção do Governo.

Então e o poder do Presidente dissolver a Assembleia? Aí, de facto, o que temos são dois órgãos com legitimidade democrática directa e que a Constituição entendeu por bem criar uma válvula de segurança para se, numa situação de crise, houvesse um conflito insanável entre Presidente da República e Parlamento, haver maneira de se revolver essa crise dissolvendo o Parlamento. Mas o poder que o Presidente tem para dissolver o Parlamento é para resolver uma crise, não é nem para criar uma crise, nem por discordâncias políticas que tenha face ao Governo porque seria uma maneira ínvia de não poder dissolver o Governo então dissolver a Assembleia porque assim têm de ser convocadas novas eleições e o Governo tem de se demitir. Não é para isso que este poder está fixado.

Aconteceu com o Presidente Jorge Sampaio uma dissolução parlamentar com o objectivo de gerar uma nova maioria parlamentar com novas eleições, que deram razão ao Presidente Jorge Sampaio que deixa ele próprio nas suas memórias que se não tivesse havido uma mudança de maioria e não tivesse havido uma mudança do quadro parlamentar ele próprio ficava numa situação muito difícil porque tinha gerado umas eleições que afinal não tinham dado resultado porque não tinham alterado a maioria parlamentar, mas essas eleições alteraram. Mas eu acho que o poder do presidente dissolver o Parlamento deve ser usado muito excepcionalmente ...

[ÚLTIMAS PALAVRAS CORTADAS]